segunda-feira, 26 de agosto de 2019

O repovoamento da Europa a partir da Ibéria com o recuo do gelo

Arte Parietal do Paleolítico Superior – Gruta do Escoural

No período do Paleolítico Superior, entre 40 mil e 10 mil anos antes do presente, o território português também foi atingido pela última glaciação de Würm, ou última idade do gelo intercalada por pequenos períodos mais amenos. Aqui o protagonista já é um sapiens como nós, proveniente da última migração africana, alimentado por muita caça e alguma coleção de frutos e vegetais. Assim, a Gruta do Escoural, em Montemor-o-Novo, é o vestígio principal da Arte Parietal em Gruta típica deste período em toda a Europa e que se terá iniciado há 32 mil anos com o Aurinhacense e terminado há 10 mil anos com o Magdalenense. Nesta gruta, a primeira fase da intervenção artística terá decorrido no período Solutrense antigo e médio. Depreende-se que neste período gelado o homo sapiens terá levado uma vida mais de cavernas e nomadismo. As deslocações destinavam-se não só para caçar, mas também para procurar o sílex, preferencial, mas não exclusivo, para as ferramentas. E a Estremadura portuguesa é rica em sílex! O homem que habitava a Europa há 40 mil anos era o homem de Neandertal, que aparece há 300 mil anos na Europa e se extingue pelo início do Paleolítico Superior, há 40 mil anos. O Paleolítico médio, sendo o mais curto – de há 100 mil anos a 40 mil – é também o menos representativo no território onde hoje é Portugal.

Encontrado no abrigo do Lagar Velho na região de Leiria, temos o Menino do Lapedo, um mestiço Sapiens/Neandertal, que ronda precisamente a sua passagem por aqui há 28 ou 30 mil anos. João Zilhão, o paleoantropólogo que mais sabe acerca do Menino do Lapedo, enquadra-o na classificação de compromisso arqueológico/antropológico – Paleolítico Médio e cultura Musteriense – uma vez marcado pela cultura do ritual funerário, o canibalismo e o culto ao urso das cavernas.

Há 18 mil anos o gelo da Europa paleolítica encontrava-se no ponto máximo do último período glacial, com 2 km de espessura de gelo na zona dos Alpes, e com o mar a 125 metros mais abaixo do que está hoje. Um dos locais menos afetados pela glaciação foi a região franco-cantábrica – Astúrias e Sudoeste da Provença. Assim como foi o caso do Sul de Itália, Balcãs e Cáucaso. Mas a partir de 12 mil anos atrás o clima sofreu uma viragem com degelo. O seu efeito fez-se sentir noutros pontos do planeta, como por exemplo no sudeste asiático, onde há 40 mil anos existia um continente. A subida do nível do mar teve como efeito o aumento do número de ilhas à volta de Java.

Assim, no período que vai de há 12 mil anos até há 6 mil anos, a Europa passou a ser repovoada com migrações de homo sapiens a partir da Ibéria e dos Balcãs, onde se encontravam refugiados do gelo desde que os seus antepassados tinham vindo do Próximo Oriente para a Europa há cerca de 40 mil anos. No entanto há 12 mil anos ainda se tinha verificado um período de ligeiro arrefecimento. Como é sabido, o Próximo e Médio Oriente entrou na era do Neolítico há 12 mil anos, mais coisa menos coisa. Assim, foi possível a pastorícia e o desenvolvimento da agricultura, e com ela o aparecimento da cultura conhecida por Cultura Natufiense. Há 8 a 9 mil anos dá-se a inversão do pêndulo migratório, desta vez com um novo fluxo migratório Leste-Oeste.

O que intriga os cientistas é o facto de os marcadores genéticos dos povos Ibéricos do Paleolítico, que até aí tinham sido bem-sucedidos a defenderem-se do frio, terem desaparecido depois da vaga migratória vinda do Próximo Oriente há 8 a 9 mil anos. Não existe um consenso quanto aos povos da Ibéria, e particularmente os do Alentejo, terem adotado o Neolítico por si próprios ou ter sido uma civilização importada de fora. Acredita-se que as comunidades mesolíticas de caçadores recolectores do ocidente ibérico, nomeadamente os concheiros do estuário do Tejo e Sado, começaram a contactar com o modo de vida neolítico que veio de fora por via marítima. Já se encontram vestígios dos primeiros pastores e agricultores no Alentejo Central a partir de 5.500 a.C. adotar a cultura Neolítica no Alentejo. Agora, se é de imigrantes vindos do Leste, ou se é genuinamente de povos autóctones, é já outro tema. O que é certo é que o legado genético dos caçadores/coletores do paleolítico da Ibéria foi apagado por imigrações posteriores vindas do Próximo Oriente.

O contributo da genética no estudo das migrações tem sido revolucionário na reconstituição das migrações populacionais ao longo da história humana. Dentro dos haplogrupos do ADN mitocondrial, várias linhagens femininas, denominadas H, U, T, X, K e I, espalharam-se por toda a Europa vindas do Próximo Oriente há cerca de 40.000 anos, cujo efetivo populacional durante o Último Máximo Glaciar teria sido pequeno. Contudo, no refúgio ibérico, um maior efetivo populacional criaria a oportunidade para o aparecimento de novas linhagens mais recentes. Dentro daqueles grupos o haplogrupo H, é o marcador genético mais frequente da população europeia. Nos nossos dias estas linhagens perduram, sendo ainda mais frequentes na Ibéria. Por exemplo, em 499 amostras colhidas em Portugal, 25,5% são H1. Usando o relógio molecular, as suas idades apontam para 15.000 anos. À medida que o gelo ia recuando para Norte estes grupos também iam subindo pela Europa refazendo rapidamente o seu povoamento. Portanto, o atual património genético feminino europeu sinaliza esse repovoamento europeu a partir da Península Ibérica.

O ADN mitocondrial e o cromossoma Y são duas porções do genoma humano que permitem rastrear respetivamente as linhagens materna e paterna de um indivíduo. As mulheres transmitem o ADN mitocondrial aos descendentes dos dois géneros, ao passo que os homens, apesar de também possuírem obviamente mitocôndrias, não transmitem ADN mitocondrial. Em contrapartida transmitem o cromossoma Y, e obviamente apenas ao género masculino. O ADN mitocondrial e o cromossoma Y são haploides, isto é, são exemplares de transmissão uniparental. E às diversas formas polimórficas destes marcadores presentes na população dá-se o nome de haplótipos. E um grupo grande de haplótipos, que são séries de alelos em lugares específicos de um cromossoma constitui um haplogrupo. Em genética humana os haplogrupos mais estudados que podem ser usados para definir populações genéticas são os haplogrupos do cromossoma Y; e os haplogrupos do ADN mitocondrial. Assim, dentro dos
haplogrupos do cromossoma Y, temos o haplogrupo I2, que pode ser o haplogrupo de referência para o Homem de Cro-Magnon, remontando a 13.000-15.000 anos e tendo atingido a sua máxima frequência nos Alpes Dináricos, Balcãs. Por sua vez o haplogrupo I2a1 é de longe o maior ramo de I2 e o mais frequentemente ligado às culturas neolíticas do sudeste, sudoeste e noroeste da Europa. 



Na imagem supra vê-se um conjunto de materiais líticos constituído exclusivamente por seixos afeiçoados e lascas de quartzito, datáveis do Paleolítico inferior, mesmo que represente o sinal mais antigo da presença humana em território português, ou seja, há cerca de 500 mil anos. O Paleolítico inferior começa há 2 milhões e meio de anos e prolonga-se até há 100 mil anos. Este espólio é da Quinta do Curral Velho, Vila Nova de Foz Côa – Santa Comba, encontrado em terraço aluvial elevado sobre a margem esquerda do Côa. A cultura é do Acheulense e o homem é Heidelbergensis.O Vale do Côa deve ser o melhor local para sabermos como foi no território português a ocupação dos nossos Adão-e-Eva. Como foram e como foi a sua arte. O Vale do Côa está pejado de centenas, se não milhares de exemplares do que foi a primeira arte da humanidade.

Arte Rupestre ao Ar Livre – Paleolítico Superior
É claro que, como a “idade do gelo” remetia os raciocínios para “os homens das cavernas”, levou tempo a descobrir a “Arte Rupestre ao Ar Livre”. A genuína atenção dos arqueólogos apenas passou a ser dada depois de 1994, quando a descoberta das gravuras paleolíticas do Vale do Côa já corria mundo. Pois, quando em 1980 foi chamada a atenção para uma rocha próxima de Mazouco (Freixo-de-Espada-à-Cinta), na margem direita do rio Douro, pouca gente se importou, incluindo as autoridades. Mas depois também fomos rápidos a recuperar o tesouro da arca perdida, nomeadamente com a suspensão da construção de uma barragem hidroelétrica que a remeteria definitivamente para o esquecimento. As gravuras mais antigas do Vale do Côa, do período do Paleolítico Superior, foram datadas com pelo menos 14.500 anos, embora pelas características estilísticas (Gravetense e Magdalenense superior) possam ser ainda mais antigas.

A ocupação humana do Vale do Côa, durante o Neolítico antigo, terá sido levada a cabo por pequenos grupos, que apresentavam alguma mobilidade. O fim do Paleolítico é marcado por profundas alterações climáticas, que motivaram uma mudança no modo de vida e, por consequência, nas mentalidades e na sua expressão artística. Dá-se início à sedentarização das populações e a um modo de vida produtor, com a introdução da agricultura e da pastorícia, e a uma nova classificação de idades: neolítico, cobre ou calcolítico, bronze e ferro. A idade do ferro marca, por sua vez, o fim da Pré-história, pois coincide com a invenção da escrita.

Assim, um pequeno grupo no Vale do Côa começaria no fim do Paleolítico a percorrer esta região alternando a ocupação dos sítios do fundo do vale com os sítios do planalto onde se formavam grandes reservas de água na sequência do degelo das neves durante a primavera. Estes reservatórios naturais atrairiam as manadas de gado herbívoro, muito conveniente para a caça. Em ambos foram identificados fragmentos de cerâmica manual com formas elementares, como recipientes esféricos, hemisféricos e globulares, alguns deles decorados. O material lítico é constituído por lascas e pequenos geométricos, obtidos, sobretudo, a partir de rochas locais, mas também de algum sílex importado de outras regiões. Para além da pedra lascada, identificaram-se alguns objetos de pedra polida, como sejam percutores e machados. Parece notar-se, no entanto, uma distinção importante entre os dois sítios. Um parece ter sido utilizado, sobretudo, para a pastorícia, associada à caça. Já o outro apresenta grandes recipientes cerâmicos, instrumentos polidos com gume, utilizados no desbravamento das florestas e uma relativa abundância de mós, poderá ter estado mais ligado ao processamento de alimentos vegetais, fossem eles cultivados ou espontâneos.




O período da Idade do Ferro na Península Ibérica, que decorreu entre 700 a.C. e o início da ocupação romana, este período caracteriza-se por uma maior hierarquização social e complexidade política, bem como uma correspondente instabilidade. Assiste-se, por outro lado, ao estabelecimento de contactos comerciais e culturais entre as populações peninsulares e as florescentes civilizações mediterrânicas, que vão contribuir para a introdução da escrita na Península Ibérica, marcando, assim, o fim da Pré-história.

As gravuras da Idade do Ferro, mais precisamente da 2ª Idade do Ferro, constituem seguramente o segundo conjunto mais relevante do Vale do Côa. Os motivos representados baseiam-se sobretudo na figura humana, que é retratada de forma isolada, ou montada em cavalos, demonstrando-se assim uma das novidades importantes da época: a domesticação deste animal. Estas figuras humanas tomam geralmente a forma de guerreiros. As figuras compõem geralmente cenas, que se acredita constituírem relatos de acontecimentos mitológicos. Para essa crença contribui o facto de muitas figuras apresentarem cabeças em forma de bico de pássaro. 
A ocupação desta época na região do Vale do Côa seguiria o padrão identificado para todo o noroeste peninsular. Assentaria numa rede de povoados fortificados no cimo dos montes, vulgarmente apelidados de castros, de onde se deteria um bom controlo visual da região envolvente e facilmente se abrigariam as populações em caso de conflito. Cada um destes povoados dominaria um pequeno território por onde se distribuíram os campos de cultivo e as zonas de pasto. Aqui esteve a antiga sede de bispado visigótico CaliabrigaNão é de excluir que alguns acastelamentos medievais tenham escolhido as mesmas implantações dos povoados proto-históricos, destruindo-os. Este parece ser o caso de Marialva, que as fontes romanas fazem corresponder à Civitas Aravorum, uma entidade político-administrativa romana, que tem origem numa etnia proto-histórica. Para além destes, a região do Vale do Côa estaria relacionada com outros grupos étnicos pré-romanos. Os Banienses teriam a sua sede administrativa no Vale da Vilariça. Esta arte da Idade do Ferro tem vindo a ser interpretada como delimitadora de fronteiras entre territórios de diferentes povos. O Vale do Côa situa-se no limite ocidental da Meseta Ibérica, dando-se aqui início aos planaltos centrais e às montanhas que marcam o litoral peninsular. Este limite natural definiria possivelmente as fronteiras entre povos, nomeadamente os famosos Lusitanos e os Vetões. A arte serviria assim para definir e manter os limites estabelecidos. A sua temática guerreira funcionaria como gestora das tensões políticas. É curioso verificar que o aparecimento da escrita parece ter provocado uma interrupção na arte rupestre do Vale do Côa. Este facto encontra-se atestado noutras partes do mundo, onde se verificam casos idênticos que parecem demonstrar que a arte rupestre é uma atividade típica das sociedades iletradas. No Vale do Côa, ao ciclo artístico da Idade do Ferro, que marca localmente o fim das sociedades sem escrita, segue-se um vazio até por volta do século XV/XVI quando surgem novos gravadores.

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