terça-feira, 20 de agosto de 2019

As mordomas de Viana no espaço mítico imaginário do Alto Minho

O imaginário e o fantástico do Alto Minho remontam à tradição celta. Apesar de os Romanos, e posteriormente os Cristãos, terem tentado eliminar o que havia de tradição Celta no noroeste da Península Ibérica, o certo é que a tradição popular manteve de forma dispersa e fragmentária aspetos que eram típicos da religião matriarcal do povo celta. Esse combate foi reiterado em inúmeros sínodos ao longo dos últimos mil e quinhentos anos. Mas na realidade, ainda se mantêm aqui e ali cultos místico-naturalistas atestados pelas fontes santas, árvores sagradas e penedos cultuados. A sacralidade da Natureza, embora cristianizada e apadrinhada por santos e santas, manteve-se. 



Na foto podemos apreciar duas arrecadas celto-castrejas oriundas da Galiza, e ao lado vemos uma jovem vianense a exibir um par de arrecadas atuais. Tanto num caso como no outro são lindíssimos objetos de filigrana em ouro. É uma evidência, as arrecadas de Viana remeterem para os tempos pré-romanos. É bom recordar que a cidade de Viana tem a sua origem no antigo Castro de Santa Luzia, onde há dois mil anos proliferavam joias em ouro como as que vemos aqui. Ainda hoje perdura a ideia de uma função mágico-religiosa dessas peças em ouro. Assim, podemos arriscar que estas festividades da Romaria à Senhora da Agonia, enquadram-se na tradição mítico-religiosa cristã do Norte de Portugal, mas ainda profundamente impregnada de motivos pagãos que remontam ao tempo da civilização Celta. 

Apesar de estas evidências entrarem pelos olhos dentro de uma normal inteligência intuitiva, a verdade é que durante a época em que nas academias pontuavam as correntes de pendor historicista – que ainda perduram, mas que agora se nota o começo de uma certa abertura para o imaginário popular de cariz esotérico – toda a influência do elemento Celta na história do território português e galego, foi ostensivamente desvalorizado, para não dizer negado. É um fenómeno que atravessou outras áreas do conhecimento e que ainda perdura. Veja-se o caso do aquecimento global, em que ainda há poucos anos cientistas eminentes negavam a evidência das alterações climáticas que os ambientalistas tanto se esforçavam para o mostrar. 

Ora, os trajes típicos de Viana do Castelo, e por assim dizer do Alto Minho, espelham quão importante e rica foi a presença da estética feminina na linguagem mítica dessas comunidades que remontam a tempos que as sociedades modernas urbanas desconhecem. Cada peça do traje tem um lugar certo e um momento próprio. Os trajes transportam, por isso, uma mensagem mítica, que confere o sentimento de pertença a uma comunidade com significados próprios, que se tornam sagrados pela via do ritual. As mulheres tiveram um papel fundamental neste processo, ao sacralizarem os espaços e os trajes. A rapariga que entra na solenidade como Mordoma, faz o peditório para a festa muito compenetrada da função que isso representa para o espírito do Sagrado. 

Todas as sociedades, ao longo dos tempos, tentaram definir as relações do homem e da mulher como casal, e dentro das estruturas sociais existentes. Para isso, atribuíram a cada um determinado lugar, que varia sensivelmente de acordo com os costumes e as tradições de cada povo. Entre os celtas as estruturas sociais eram as de todos os povos indo-europeus; isto quer dizer que a tendência era o patriarcalismo com o homem em primeiro plano. Mas ao analisarem-se os costumes, é surpreendente a constatação de que a condição feminina entre os celtas é mais respeitada que entre os povos do Mediterrâneo. É sabido que gregos e romanos mantinham a mulher num estatuto bastante secundário. Os celtas, ao contrário, atribuíam-lhe certos direitos que só chegaram ao Mediterrâneo séculos mais tarde.

Os celtas que invadiram a Europa ocidental por volta do século V a.C. não eram numerosos; constituíam uma elite guerreira e intelectual, e encontraram, nos territórios que vieram a ocupar, populações autóctones de densidade bem maior, às quais impuseram sua cultura, sua língua, sua religião e suas técnicas. Mas em contrapartida, assimilaram dos autóctones alguns costumes, especialmente os referentes às relações. Assim, as condições muito especiais do estatuto da mulher, que se observam no quadro da civilização celta, devem ser buscadas na herança dos povos outrora instalados na Europa Ocidental.

O que é de salientar é a relativa independência da mulher em relação ao homem. A mulher pode ter bens próprios, como objetos de uso, joias e cabeças de gado. Como o sistema celta admitia a propriedade mobiliária individual juntamente com uma propriedade rural coletiva, a mulher podia dispor de tal propriedade a seu bel-prazer, vendendo-a se assim quisesse, adquirindo outras por meio de compra, de prestação de serviços ou por doação. Ao casar-se, a mulher conservava seus bens pessoais e os levava consigo em caso de dissolução do casamento. Isso mostra eloquentemente que a mulher conseguira, numa sociedade patriarcal, manter uma certa predominância e uma autoridade moral incontestável.

O casamento celta, aliás, era uma instituição flexível, resultante de um contrato cuja duração não precisava necessariamente ser definitiva. A mulher escolhia livremente seu marido, pelo menos teoricamente, pois às vezes os pais arranjavam casamentos por oportunismo económico ou político. Mas mesmo nestes casos, a moça era consultada. O mesmo acontecia nas famílias reais em que a transmissão da soberania se dava às vezes por intermédio da mãe, ou do tio materno; existem lembranças flagrantes dessa prática de transferir a herança aos filhos do irmão da mãe. O exemplo mais célebre é o de Tristão, herói de uma lenda medieval de origem celta, herdeiro de seu tio materno, o rei Mark. 

O nome de Morrigane (Morrigu) que significa "grande rainha", evoca o da "fada" Morgana das novelas arturianas e do ciclo do Graal, tratando-se em qualquer dos casos do mesmo arquétipo mágico (sexual e guerreiro). Morrigane é bem o tipo de mulher celta vista pelos autores das epopeias mitológicas.

De acordo com o romantismo cultural (dado na Europa por volta dos séculos XVIII e XIX) que procurou aprofundar as diferentes origens do povo contra os estados imperialistas da época, é nos países mais ocidentais, eminentemente rurais e com uma cultura muito parecida, onde o termo "celta" é adotado como um rótulo de autoidentificação. Por um lado, a diferenciação cultural histórica é reivindicada, e por outro lado, há um interesse mútuo naqueles outros povos que compartilham a mesma língua. Os dados linguísticos apoiam a uniforme celticidade substancial de lusitanos, galegos, galeses e irlandeses. 

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