sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Os ‘Franj’ do tempo das cruzadas



No quarto capítulo do livro ”As Cruzadas vistas pelos Árabes” – a 1ª edição em português das Edições 70 é de 2013, mas a 1ª edição original em francês já é de 1983 – , Amin Maalouf descreve o estado de espírito das gentes de Damasco naquele verão de 1100, que se anima quando, depois de tantas derrotas sucessivas e tantas humilhações infligidas pelos Franj (os franceses, ou os francos no vocabulário dos sírios), chegam notícias que Saint-Gilles, Godofredo e Boemundo, os três principais obreiros da invasão franca, tinham sido neutralizados. Os que estavam descoroçoados pela aparente invencibilidade dos ocidentais recobram ânimo.

Amin Maalouf segue a narrativa de Ibn al-Qalanisi [1073-1160] – cronista árabe em Damasco – “Deus concedeu a vitória aos muçulmanos que mataram um grande número de Franj. Boemundo e alguns dos seus companheiros foram capturados e conduzidos acorrentados para o norte da Anatólia. Na altura em que assediava a cidade de Acre, Godofredo, senhor de Jerusalém, foi atingido por uma frecha que o matou.”

E Amin Maalouf prossegue: “Só na primavera de 1100 é que o seljúcida descobriu subitamente a necessidade de uma guerra santa contra os infiéis. Um dos seus vassalos, um chefe beduíno do planalto dos Golan, queixou-se das repetidas incursões dos Franj de Jerusalém que lhe pilhavam as colheitas e roubavam os rebanhos, de modo que Dukak resolveu intimidá-los. Num dia de maio, quando Godofredo e o seu braço direito Tancredo, um sobrinho de Boemundo, regressavam com as suas tropas de uma razia particularmente frutuosa, o exército de Damasco atacou-os. Ajoujados com os despojos, os Franj foram incapazes de travar combate. Preferiram fugir, deixando atrás de si vários mortos. O próprio Tancredo escapou por uma unha negra.”

Godofredo de Bulhão [1058-1100] foi um dos líderes da Primeira Cruzada e o primeiro soberano do Reino Latino de Jerusalém. Era senhor do Ducado da Baixa Lorena que lhe havia sido atribuído por Henrique IV do Sacro Império Romano Germânico em 1087, após um longo período de lutas. Mas era um nobre menor, a sua influência na Europa viria só depois das cruzadas. Os filhos não primogénitos de nobres, como era o caso de Godofredo, viram a oportunidade de estabelecer um domínio seu no exterior, em terras que se podiam conquistar aos muçulmanos. Em junho de 1098, ainda no contexto da Cruzada dos Pobres, participou da tomada de Antioquia, após um longo e sofrido cerco que viu alguns cruzados voltarem à Europa, desanimados com a aparente impossibilidade da conquista. Quando Aleixo I, em Bizâncio, teve notícias da situação desesperada, pensou que os ocidentais estavam derrotados e não veio em sua ajuda, conforme tinha prometido. Por isso, quando a seguir os cruzados finalmente tomaram a cidade, decidiram que também eram inválidos os juramentos feitos a Aleixo I. Boemundo, o primeiro a entrar na cidade, acabou por assumir o controlo destes domínios, depois de derrotar as forças muçulmanas de Cerboga de Mossul.

Os francos, mal chegaram à Cidade Santa em junho de 1099, de imediato construíram escadas de madeira para subir as muralhas. O ataque principal ocorreu a 14 e 15 de julho. Godofredo e alguns dos seus cavaleiros foram os primeiros a penetrar na cidade. E uma vez lá dentro, seguiu-se o que é sabido: o massacre de muçulmanos e judeus. Mas o objetivo programado só foi conseguido ao fim de três anos, com a posse do Santo Sepulcro.

Boemundo de Taranto ou Boemundo de Altavila [1058-1111], um dos líderes da Primeira Cruzada, tornou-se assim o primeiro príncipe de Antioquia. Durante a sua vida, até à tomada de Antioquia, Boemundo assinava documentos simplesmente como Roberti ducis filius (Filho do duque Roberto). O seu filho e sucessor Boemundo II de Antioquia referia-se ao pai como magnus Boamundus (que pode ser lido como Boemundo o Grande, provavelmente pelos seus feitos guerreiros, se bem que conste que era de uma grande compleição física. Também era conhecido como Boemundo o Velho, para se diferenciar do filho, supostamente o Novo).

A partir daqui a principal fonte sobre este assunto vem de Guilherme de Tiro [1130-1184], cronista do reino de Jerusalém do final do século XII, mas como é habitual nos cronistas destes tempos, a sua credibilidade deixa muito a desejar. Em suma, não sabemos muito sobre as fontes de Guilherme de Tiro. E isto pode muito bem colocar em dúvida algumas das suas afirmações. Pode ter-se baseado em relatos populares, ou numa tradição oral não muito fiável. Em alternativa, pode ter consultado seguidores interessados ou apologéticos, limitando-se a reproduzir o que eles lhe diziam. Por exemplo, Godofredo já era um herói lendário entre os descendentes dos primeiros cruzados. Acreditava-se que tinha sido possuidor de uma imensa força física, inclusivamente que lutara e vencera contra um urso na Cilícia, e que decapitara um camelo com um golpe de espada. Juntava à coragem, a prudência, a moderação e a piedade mais viva. Por ter sido o primeiro governante da Jerusalém cristã, foi idealizado em histórias posteriores, já no tempo de Guilherme de Tiro.

Na verdade, Godofredo foi apenas um dos vários líderes da Primeira Cruzada. Apesar da aceitação geral, de que o cruzado bolonhês tomou o título de Advocatus Sancti Sepulchri (Protector do Santo Sepulcro), este título só surge numa carta que não foi escrita por Godofredo. Mas como Godofredo nunca assumiu o estatuto de rei de Jerusalém, assim aquele título faz sentido porque é uma forma de afirmar que considerava a Terra Santa, e Jerusalém em primeiro lugar, como propriedade de Cristo, e talvez, por extensão, da Santa Sé. Era assim um posicionamento de servidor e defensor da Igreja. Sendo nominalmente senhor do Santo Sepulcro, este mantinha-se sob a autoridade eclesiástica. Durante a sua curta soberania sobre Jerusalém (cerca de um ano), Godofredo teve de defender o novo reino contra os fatímidas do Egito, que foram derrotados na batalha de Ascalão.

Quem lhe sucedeu foi Balduíno de Bolonha, o seu irmão mais novo, este sim, o primeiro a ser coroado rei de Jerusalém quando sucedeu ao irmão, dado que Godofredo, como se disse acima, nunca quis receber o estatuto de rei. Um dia, sem ter sido convocado, apresenta-se no palácio de Balduíno um tal Hugo de Payens acompanhado de mais 8 cavaleiros. Não se sabe o que lá foram fazer, mas pelo menos sabe-se que foram bem recebidos. É preciso contextualizar melhor esta história.

No contexto das Cruzadas, antes da Primeira Cruzada oficial, como se tem vindo a contar o protagonismo de Godofredo de Bolonha juntamente com um grupo que incluía Raimundo IV de Toulouse, Boemundo de Taranto, Roberto II da Flandres e Estêvão II de Blois, houve uma falsa partida, a chamada Cruzada dos Pobres, pregada pelo Papa Urbano II em 1095.

Ora, é ligado a este espírito que surge, numa nebulosa histórica muito mal contada, a milícia dos Pobres Cavaleiros de Cristo organizada por esse tal Hugo de Payens, um fidalgo francês da região de Champanhe, que viria a ser o primeiro mestre e fundador da Ordem dos Templários (1119?). Hues de Paiens delez Troies, na versão de Guilherme de Tiro. Ele era de uma família que, segundo cartas que pertenciam à Abadia de Molesmes, tinha parentesco com os Montbard, família de Bernardo de Claraval, e era originalmente um vassalo do conde Hugo de Champanhe. Hugo de Payens havia casado em 1108 com Elisabeth de Chappes. Esta união durou pouco tempo, Elisabeth morreu em 1113 ou 1114, e então ele partiu para a Terra Santa, onde já havia estado uns anos antes. Desta vez ele estabelece-se em definitivo. Junta-se a Godofredo de Saint-Omer, fundando então a partir dos Pobres Cavaleiros de Cristo que operavam para defender o Túmulo de Cristo, como se disse, a Ordem do Templo. Hugo de Payens dirigiu a Ordem do Templo por quase vinte anos, até à sua morte na Terra Santa em 1136.

Portanto, Hugo de Payens viveu em Champanhe durante os primeiros tempos da sua vida. A data exata do nascimento é desconhecida, mas pode ter sido entre 1070 e 1080. É provável que Hugo de Payens fosse um senhor de renome, mas sabe-se que não participou no Concílio de Clermont em 1095 convocado pelo Papa Urbano II, o qual desencadeou o movimento das Cruzadas. Nessa altura ele ainda estava na corte do conde de Champanhe. Só mais tarde, em 1104, ele acompanha Hugo de Champanhe à Terra Santa, onde permaneceu por três anos. E só quando de volta a casa, em 1107, recebe o domínio de Payens dado pelo conde de Champanhe.

Curiosamente, Fulquério de Chartres, cronista da Primeira Cruzada, e que acompanhou o exército de Balduíno I de Jerusalém como capelão, não faz qualquer menção a Hugo de Payens, ou a algo muito remotamente relacionado com os templários. Na verdade, existe um silêncio notável sobre as atividades dos templários durante os primeiros tempos da sua existência. E, todavia, em 1128, ou pouco depois, um opúsculo louvando as virtudes dos templários foi publicado por nada mais nada menos que São Bernardo, abade de Claraval – “Em Louvor da Nova Ordem de Cavaleiros” – o principal porta-voz da Cristandade nessa época. Entra então a partir de agora em cena o grande vulto que foi Bernardo de Claraval, que sabemos quão preciosa foi a ajuda que deu a Hugo de Payens para consolidar o império templário. Após o reconhecimento de Hugo de Payens como Grão-Mestre da ordem religiosa-militar, em 1128, Bernardo ajuda-o a redigir as regras de conduta que guiariam os cavaleiros, com um prefácio entusiástico, baseadas nas da ordem monástica cisterciense. No final desse ano Hugo de Payens visita a Inglaterra, e já é recebido com grande reverência pelo rei Henrique I. Este Henrique era o quarto filho de Guilherme I de Inglaterra, tendo reinado de 1100 a 1135.

Em 1139, o Papa Inocêncio II – um antigo monge cisterciense de Claraval e protegido de São Bernardo – emitiu uma bula segundo a qual os templários não deviam obediência a nenhum poder secular ou eclesiástico para além do próprio papa.

A partir daqui, de toda a Europa começam a afluir os filhos mais novos das famílias nobres para se alistarem nas fileiras da Ordem. E de todos os quadrantes da Cristandade choviam doações em dinheiro, bens e terras para a Ordem. O próprio Hugo de Payens doou as suas propriedades. Todos os novos recrutas eram obrigados a fazer o mesmo, sendo compelidos a renunciar a todos os seus haveres. Uma década depois a Ordem do Templo já detinha quantidades substanciais de propriedades em França, Inglaterra, Escócia, Flandres, Espanha e Portugal, e claro, no Ultramar. Uma coisa era o voto de pobreza a título individual, outra coisa era a Ordem. Todas as doações eram bem-vindas, mas a Ordem estava proibida de dar fosse o que fosse. Mas o Ultramar, esse, com a última forteza a cair em 1291 – Acre – estava todo sob controlo muçulmano, incluindo a Terra Santa.

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