sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Do Imaginário - [1] - A Etymologiae de Isidoro de Sevilha



As sociedades, sejam elas de que género forem, para funcionarem tiveram sempre de recorrer a símbolos e observar certos rituais durante as suas manifestações, desde a Antiguidade até aos dias de hoje. No entanto, ainda rareiam os cursos nas Universidades que se dediquem ao estudo do imaginário e do simbólico usando metodologias apropriadas, como por exemplo o método de Gilbert Durand (Antropologia do Imaginário), e Michel Maffesoli, ou seja, numa perspetiva comparatista e de interdisciplinaridade.

Estudar determinadas obras do passado implica um esforço hermenêutico à altura da interpretação dos mitos revividos cuja substância é formada por imagens e símbolos. Mas vão aparecendo numa ou noutra Universidade, nas Faculdades de Ciências Sociais e Humanas, Gabinetes de Estudos de Simbologia que, apesar da sua timidez, têm feito o seu caminho na análise profunda da linguagem simbólica.

Assim, se quisermos entrar na “Árvore do Conhecimento Humano”, os ramos da ciência e da religião são obrigatórios. E depois não podemos ignorar o ramo mais difícil, que é o ramo dos arquétipos, dos mitos, e do mais escondido que há designado pela palavra “esoterismo”.

Nos tempos formativos da cultura ocidental, depois da queda do Império Romano, como é que os herdeiros dos cacos, durante o período que se convencionou chamar de Idade Média, entendiam o mundo onde assentavam os pés? Era uma mistura de pedaços de conhecimento e pseudoconhecimento: dogma bíblico; contos de viajantes; especulações filosóficas ecléticas; e imaginações míticas da gente comum.

A Antiguidade foi, em diferentes épocas e ao longo do tempo, percecionada de várias maneiras. Se pensarmos nos relatos dos viajantes europeus que percorreram as terras do Próximo e do Médio Oriente, desde a Idade Média, encontramos muitas referências culturais que expressam uma certa estranheza e perplexidade perante a alteridade, assim como exprimem ideias preconcebidas em torno da História Antiga, propagadas tanto pelos autores clássicos quanto pela Bíblia. Sabemos atualmente que o homem medieval viajou muito mais do que aquilo que se supunha. Durante a Idade Média, os cristãos que cruzavam os caminhos do Ocidente, quer fossem reis, senhores, camponeses, clérigos, monges, funcionários, artesãos, almocreves e mercadores, ou fugitivos e vagabundos eram, simultânea ou exclusivamente, peregrinos em busca dos santuários e das relíquias que lhes permitiam obter graças e proteções celestes. Uma demanda relacionada com a procura do Sagrado que transcendia a deslocação motivada simplesmente por preocupações de comércio ou outras necessidades profanas. Na floresta de símbolos em que se tornam os caminhos, recordam-se, insistentemente as marcas do invisível que davam força para afastar o medo e o receio do Outro e o perigo que esse encontro implicava.

A estes testemunhos, juntam-se outras fontes, textuais e iconográficas, que refletem uma representação diacrónica da Antiguidade. Este vasto corpus oferece informação valiosa no que respeita à forma como a Antiguidade foi sendo entendida, tornando-se essencial para analisar as perceções/reflexões culturais do Outro Antigo.

Isidoro de Sevilha [560-636], considerado por um historiador do século XIX "o último académico do mundo antigo". Tornou-se famoso pela “Etymologiae” – uma enciclopédia que juntou fragmentos de muitos livros antigos que teriam sido completamente perdidos se não fosse ele. Vivia-se a época da desintegração da cultura clássica, marcada por violência aristocrática e analfabetismo. Isidoro envolveu-se na conversão da casa real visigótica ao catolicismo. Ele, era muito influente no círculo mais íntimo de Sisebuto, o rei da Hispânia Visigótica.

Isidoro ensinava na Etymologiae que a Terra era redonda. O sentido do que ensinava era ambíguo e alguns autores acreditam que ele se estava a referir a uma Terra no formato de um disco. Mas outros escritos deixam claro, entretanto, que ele considerava a Terra como sendo esférica. Ele também considerou que a possibilidade dos antípodas era uma lenda. Não havia evidência da sua existência. A analogia do formato de disco de Isidoro continuou a ser usada ao longo da Idade Média por autores que favoreciam claramente a ideia de uma Terra esférica, como por exemplo o bispo do século IX Rabanus Maurus, que comparava a parte habitável do hemisfério norte, a Ecúmena, como uma placa circular plana a boiar no grande oceano da Terra. Pois, a forma mais comum de apresentação da Terra era o “mapa roda” ou “mapa T-O”. Toda a superfície habitável do planeta estava representada como um disco circular (um O). Esta roda estava dividida por um curso de água em forma de T. O Oriente ficava no topo, organizando a orientação do mapa. Acima do T estava o continente da Ásia. Em baixo, à esquerda estava o continente da Europa. Do lado direito estava o continente da África. A linha vertical do T que separava a Europa da África, era o Mediterrâneo. A linha horizontal era o Danúbio e o Nilo. O conjunto aparecia rodeado pelo vasto “Mar Oceano”. Portanto, era um círculo de terra plana emersa num enorme globo aquoso que constituía a totalidade do planeta. E Isidoro de Sevilha, o homem mais sábio do seu tempo, explicou que, segundo as Escrituras, a Terra tinha sido dividida depois do Dilúvio pelos três filhos de Noé: Sem, Cam e Jafet. Como muitas outras obras, a Etymologiae foi-nos legada no século XIII pela corte de Afonso X (o Sábio ou Astrólogo), avô do nosso D. Dinis, em Toledo.

D. Dinis já era portador de uma visão da geografia terrestre distinta da que então vigorava entre a generalidade dos letrados europeus. Daí merecer que se lhe atribua o título de precursor dos Descobrimentos, vários anos antes de os legítimos protagonistas se terem lançado na grande Epopeia que vem nos Lusíadas. Enganamo-nos se vemos a Idade Média apenas pelos seus castelos em ruínas, a massa imponente das catedrais góticas, ou das narrativas das Cruzadas e da Inquisição. Esses são, por assim dizer, os traços exteriores sobre os quais agiram homens cujo interior era mais rico do que imaginamos. Na sequência das traduções de árabe para latim, no século XII, que por sua vez os árabes o haviam traduzido do grego, a Europa passou a ter acesso ao pensamento de Aristóteles, à matemática de Euclides, ou à astronomia dos próprios árabes. E esta dinâmica criou uma maior pressão para a organização do conhecimento.

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