segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Do Imaginário - [2] - Viajantes Lendários

Continuando o estudo do Imaginário, o post anterior começou pela Etymologiae de Isidoro de Sevilha, para entrarmos na Árvore do Conhecimento da Europa que estava feita em pedaços depois da Queda do Império Romano do Ocidente.
Como se pode ler no Livro XV de Isidoro de Sevilha “Aqui começa o décimo quinto livro que trata das províncias e dos países […] o mundo está dividido em três partes: uma chama-se Ásia, a outra Europa e a última África […] Eu digo então que o Paraíso Terrestre estava situado no Canal que o Tigre e o Eufrates fazem quando se juntam, entre o lugar onde as águas se unem, antes de caírem no Golfo Pérsico […].”

Ora, alguns dos heróis populares da época medieval são monges corajosos que partem em demanda do Paraíso de que fala Isidoro. Uma destas histórias populares contava que Seth, filho de Adão, trouxera consigo algumas sementes da Árvore da Sabedoria que plantou dento da boca do pai quando este morreu. Outra história falava de três monges que abandonaram o seu mosteiro entre o Tigre e o Eufrates para procurarem o lugar ‘onde a Terra se junta ao Céu’. Até que a cerca de vinte milhas do Paraíso Terrestre, encontraram São Macário já com uma idade muito avançada, que vivia numa gruta com dois leões seus amigos. São Macário deleitou os monges com histórias sobre o Paraíso, e depois mandou-os embora com o aviso de que nunca nenhum mortal poderia lá entrar.

A Viagem de São Brandão 


Um dos viajantes mortais mais famosos a demandar o Paraíso foi o monge irlandês São Brandão (484-578). Teve um grande impacto no seu tempo e na cartografia que se seguiu, contada em latim e mais não sei quantas línguas. Sã Brandão ouve falar na Terra da Promissão dos Santos, uma ilha que se alcança depois de se atravessar um nevoeiro muito espesso. Decidido a visitar a ilha abençoada por Deus, Brandão junta dez companheiros, constrói uma barca leve e pequena, e aí vão eles. Ao fim de várias peripécias encalham numa ilha pedregosa e sem vegetação. Bem, depois seguem-se três meses de navegação em que só veem o mar e o céu. Num ciclo de aventuras, e outras tantas manifestações do poder divino, passaram-se sete anos. Brandão volta a casa com os seus companheiros, e morre. 

Há o Brandão real, de carne e osso, e há a lenda de Brandão, uma variação cristianizada do mais velho tema literário conhecido: o da Grande Odisseia. Um fundo comum de mitologias e lendas indo-europeias, pelo menos desde o terceiro milénio a.C. Muitos destes episódios são sínteses de várias tradições europeias, incluindo os mitos irlandeses do “outro mundo feliz” a ocidente. Foram precisos dois séculos de exploração marítima portuguesa em demanda da ilha (1526-1721) para finalmente se abandonar a ideia da sua existência no mundo físico. 

Enquanto há inúmeros relatos fictícios de viagens de monges em busca do Paraíso, sendo o de São Brandão um dos mais famosos no âmbito da cultura atlântica, há relatos de viagens organizadas por ordens monásticas que foram absolutamente verdadeiras, assim como de outros autores conhecidos e bem identificados pelos historiadores da Idade Média, tais como: Guilherme de Rubruck (Flandres 1220-1293); Marco Polo (Veneza 1254-1324); João de Plano Carpini (Perugia 1182-1252); João de Mandeville (Inglaterra 1300-1372); Ibn Batuta (Tânger 1304-1377 Fez); Infante Dom Pedro de Portugal (Lisboa 1392-1449). Um Livro de Viagens também famoso, sobretudo na Península Ibérica, é o “Libro del Conosçimiento”, de autor desconhecido, mas cuja narrativa é uma mistura de coisas verdadeiras com coisas fictícias, avaliando o género de testemunhos que estão nele vertidos. 

O progresso comercial na Europa e, consequentemente, o aumento acentuado da rede de trocas que, no século XIII cobre a maior parte do continente, deve-se ao nascimento da Liga Hanseática, a Norte, e das cidades-estado italianas, a Sul: Génova, Veneza, Florença, Pisa e Siena. A Norte, as rotas do báltico conheceram um surto comercial intenso com os panos dos Países Baixos e a lã de Inglaterra. E assim aparece o mercador, que ao ascender aos lugares cimeiros da pirâmide social, introduziu uma visão do mundo em muitos aspetos diversa da dos restantes grupos sociais. 

Em pleno século XIII, depois de se ter consumado a progressiva identificação entre nobreza e cavalaria, as Ordens Militares tiveram um papel central na reorganização política da Europa, particularmente na Ibéria, muito mais aberta e fluida do que as suas congéneres transpirenaicas. No caso português, os motores dessa história resultaram das crises políticas de 1245-1248 e 1383-1385. A tomada de poder pelos correligionários do Mestre da Ordem Militar de Avis, significou a ascensão nobiliárquica de muitos bastardos e filhos segundos de linhagens de segunda ou terceira grandeza, assim como a de guerreiros não fidalgos, reforçando-se, nesse sentido, a osmose social e conceptual entre cavalaria e nobreza.

Guilherme de Rubruck 


Robruck era um homem com queda para línguas, sabia árabe. Assim, Luís IX, que estava na Terra Santa, convocou-o para levar cartas a Sartach e ao Grande Khan. A este frade uniu-se Bartolomeu de Cremona, e partiram de Constantinopla de barco até à Crimeia, em maio de 1253. E daqui seguiram por terra até à Mongólia. Escusado será dizer que passaram fome e as penas do inferno. Ao chegarem diante do Grande Khan Mangu, este teve compaixão e deixou-os ficar alojados em Karakorum por dois meses, até ao fim do inverno. Guilherme encontrou aqui um grupo razoável de cristãos nestorianos. Mas não ficou feliz porque esta seita era considerada herética pela ortodoxia. Pela primeira vez na literatura da Europa, aparece escrito que Cathay é o mesmo que a terra de Seres, que os Romanos tinham descrito como a terra da seda. E também aparece a primeira referência europeia ao sistema de escrita chinês, e ainda aos rituais dos lamas, os monges budistas do Norte. Rubruck foi o primeiro a negar a existência dos portentos sancionados por Isidoro de Sevilha. Não encontrou quaisquer provas daquelas coisas em que Santo Agostinho acreditava. 

João de Plano Carpini 

Com a entrada dos mongóis em cena no Ocidente, era preciso falar com eles. Assim, das viagens que se haveriam de realizar resultaram consequências determinantes para a visão europeia do mundo. A Europa descobriu um universo que até então apenas conhecia das lendas e narrativas. Uma embaixada tão famosa quanto marcante saída do Concílio de Lyon foi a do franciscano João de Plano Carpini, em 1245. Em 1243 tinha sido eleito um novo papa, um homem muito enérgico chamado Inocêncio IV. Daí ter exortado os cristãos a bloquearem toda e qualquer estrada por onde os tártaros pudessem entrar, tendo em mente as atrocidades cometidas recentemente na Polónia, Rússia e Hungria. Mas a partir daqui, vai-se destacar o papel de duas ordens: franciscanos e dominicanos que muito haviam de participar na pax mongólica

Fosse como fosse, o papa incumbiu Carpini de uma missão importante, não menos arriscada: ir à capital da Tartária e converter ao Cristianismo Kuyuk Khan. Não havia notícia de algum emissário enviado até essa data ao Norte da Mongólia, e que tivesse ido à capital da Tartária, que tivesse regressado. Na Europa Oriental e Ásia Central, Carpini e os seus homens, tiveram de enfrentar os ventos e o frio entorpecedor das estepes e das neves dos montes Altai. E chegados ao deserto de Gobi, o calor. Depois de uma viagem de vários e árduos meses, a meio de agosto chegaram à corte do Grande Khan em Karakorum, no coração da Mongólia. Carpini veio a ser o primaz da Sérvia e arcebispo de Antivari de 1247 a 1 de agosto de 1252, quando morreu. 

Os frades missionários atuavam como viajantes curiosos e atentos e não apenas como missionários evangelizadores. Graças aos seus relatos sabemos hoje muito sobre a Ásia da época e, sobretudo, sobre a visão europeia deste continente. Por outro lado, os livros de viagens oferecem uma visão bastante clara da conceção do mundo e da realidade na Idade Média. Ao mesmo tempo que constituem uma fonte incontornável para compreender aspetos muito diversos da cultura medieval. É claro que temos de mergulhar nos termos em que se escrevia nessa época sem os óculos da época em que vivemos para melhor compreender o que neles está escrito. Nestes livros de viagens deteta-se uma clara ausência de separação entre geografia, história, lenda e mito. Não existem fronteiras bem delimitadas, como atualmente, para diferenciar estes domínios. Não raras vezes, os viajantes falam dos portentos que presenciaram, ou de que ouviram falar. É um mundo maravilhoso, na medida em que é muito diferente daquilo que fazia parte do seu mundo natural ocidental. A contemplação de realizações como a Igreja de Santa Sofia em Constantinopla, não deixava ninguém indiferente, os viajantes, e depois os leitores.

João de Montecorvino

João de Montecorvino (Itália 1247-1328 China) era franciscano e foi considerado o primeiro apóstolo da China. Em 1291 embarcou em Ormuz rumo à China, onde chegou em 1294 e se instalou em Pequim, na altura chamada Cambalique (a cidade do Cão). Monteorvino possuía já uma ampla experiência das missões na Arménia e na Pérsia, e falava tártaro. Antes desta viagem à China, passou dez anos em Tabriz. Outro viajante célebre que chegou a Pequim, foi o franciscano Odorico de Pordenone. Saiu de Veneza em 1316 e permaneceu na Ásia até 1329, tendo percorrido a Pérsia, a Índia, o Ceilão e a China. 

Ibn Batuta 

Ibn Batuta foi um viajante e explorador berbere. Na primeira viagem partiu da sua cidade natal em 1325, Tânger, cuja rota englobava o Egito, Meca e Bagdad. Mais tarde, correu a Arábia do Sul, a África Oriental, as margens do Nilo, a Anatólia, o Mar Negro, a Crimeia, a Rússia, o Afeganistão, a Índia, a Indonésia e a China. Nos últimos anos de vida, esteve em Granada, que era ainda a capital do reino nasrida, dinastia muçulmana ibérica. Realizou depois a travessia do Deserto do Saara pelo famoso e mítico trilho das caravanas de Tombuctu. Por fim, acabou por se fixar no seu país de origem, Marrocos, onde acabaria por falecer em 1377, na importante cidade de Fez. Como testemunho das suas viagens deixou ficar a obra ditada e escrita pelo seu secretário, que se intitula Tuhfat annozzâr fi ajaib alamsâr, a qual relata as várias epopeias e jornadas aventurosas da sua vida de viajante explorador.

Em vinte e cinco anos este marroquino percorreu mais de cem mil quilómetros. Foi imensa a carga de informação que recolheu e toda a Ásia. Ibn Batura reflete uma aguçada curiosidade intelectual, um gosto particular pelos prazeres sensuais, sem excluir certamente as efabulações a que os narradores da época estavam atreitos. Mas simultaneamente faculta informações muito importantes ao nível da geografia.

Os viajantes muçulmanos tinham uma intenção um pouco diferente da dos viajantes cristãos. Os muçulmanos dessa época, eram espíritos desejosos de se instruírem. Nas viagens de longo curso que faziam, numa réplica das viagens da Antiguidade, regra geral tinham como missão a recolha de conhecimentos e refletir sobre o saber em busca das maravilhas da criação. É claro, aproveitavam para ir a Meca, a principal morada de destino das suas peregrinações. Mas usavam aquele espírito do “já agora”: Já agora que viemos aqui, vamos aproveitar para conhecer mais coisas nestes espaços circundantes. 

Libro del Conosçimiento


O Libro del Conosçimiento (LC) é um texto riquíssimo que mostra a visão ibérica do mundo num tempo a que se convencionou chamar Idade Média, embora saibamos que em mil anos tem forçosamente de haver muitas "idades médias".

O LC possui um manancial de dados geográficos que deve ter sido útil a todos aqueles que já tinham o espírito dos Descobrimentos no corpo. A cartografia é gigantesca, certamente influenciada pelos conhecimentos árabes, para além, naturalmente, de fontes literárias de fundo lendário e mitológico, tão essenciais para o impulso da aventura.

Tal como acontece à grande maioria dos livros de viagens, o LC não contém ações paralelas e entrelaçamentos que obriguem o narrador a interromper ou a deixar em suspenso o relato. Hoje esta obra é definitivamente inscrita no género específico dos livros de viagens imaginárias. Mas quem é, de facto, o autor do texto, não se sabe. A atribuição a um membro anónimo da ordem franciscana deve-se ao facto de, nos primeiros anos do século XV os revisores da obra “Le Canarien”, terem qualificado o autor do LC de “frère mendeant”. E quanto à data em que foi escrito, é por aproximações que se chega a meados ou finais do século XIV. Le Canarien, que é a crónica da expedição francesa às Canárias, empreendida entre 1402 e 1406, utilizou diversas passagens do LC.



É certo que o autor não realizou a viagem descrita no LC, porque impraticável naquela época. No entanto, é possível que tenha percorrido algumas das rotas descritas, ou que tenha recebido informação em primeira mão. Não há dúvida que é um documento assombroso, fundamentalmente inspirado em mapas. É fácil de aceitar que em Sevilha, o principal porto castelhano de chegadas e partidas de embarcações, houvesse em finais do século XIV uma intensa circulação de mapas, bem como relatos orais e escritos de viagens.

No frontispício do manuscrito Z representa-se o suposto autor a entregar a sua obra a um rei castelhano da segunda metade do século XIV, provavelmente João II de Castela. No manuscrito S assinala que Avinhão é uma cidade onde mora o Papa de Roma. Acontecimento crucial da história da Europa medieval, o Grande Cisma do Ocidente é referido nos quatro manuscritos. No quadro da sua passagem pelas ysllas perdidas, o autor destaca que a segunda ilha, Lançarote, possui tal denominação porque a população nativa matou um mercador genovês chamado Lançarot. Esta referência, idêntica nos quatro manuscritos, ao acontecimento que deu nome à ilha Canária de Lançarote tem, naturalmente, consequências ao nível da datação do LC, a qual podemos deslocar por isso para os finais da década de 80 do século XIV.


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