sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Querer o Paraíso e mandar nele


Quando Ângela Merkel passou recentemente pelo que Rui Rio está a passar com a cedência de alguns dos seus valores democráticos e patrimoniais para aceitar um acordo com André Ventura, do Chega, um partido de extrema direita, xenófobo racista e outras aberrações, para viabilizar um governo de direta regional nos Açores, e apear do poder o PS que já governava os Açores há muitos anos, o seu comportamento foi muito diferente do de Rui Rio. Ângela Merkel insurgiu-se por a liderança da CDU no Estado da Turíngia querer aceitar entrar numa coligação em que também entrava a AfD, uma força política idêntica ao Chega, a fim de obterem a maioria para governar. E a verdade é que a intervenção de Ângela Merkel foi decisiva para que a coligação não prosseguisse. 


Em Of Paradise and Power, 2003, o historiador Robert Kagan afirma que os europeus ocidentais, particularmente os ingleses, viviam no Paraíso sem saberem que era um paraíso. Daí que não deveriam ter brincado com o poder sem saberem quais eram as regras do Paraíso. Segundo as regras do Paraíso, como a História está farta de nos contar, as coisas podem mudar muito depressa, em apenas algumas décadas, porque quem manda não somos nós. A ordem natural das coisas tem as suas próprias regras. E a verdade é que, apesar das lições da História, em 2016 a Velha Albion decidiu abandonar a União Europeia em referendo. Of Paradise and Power: America and Europe in the New World Order foi escrito alguns anos antes de o Brexit ter ganhado, mas não é a primeira vez que há pensadores que escrevem coisas premonitórias antes do tempo, e não há ninguém que consiga explicar esse fenómeno. É um ensaio em que Robert Kagan tenta explicar as diferentes abordagens que os Estados Unidos e a União Europeia adotam em relação à condução da política externa. Kagan argumenta que os dois lados do Atlântico têm visões filosóficas muito diferentes em relação ao uso do poder. Consequência natural do poder excessivo dos americanos, e da falta dele por parte dos europeus.

Depois que o Sacro Império Romano foi dissolvido, em 1806, a Confederação Germânica de 39 pequenos Estados reuniu-se em 1815 no Congresso de Viena. Isso, por sua vez, levou à Confederação da Alemanha do Norte, e em seguida à unificação da Alemanha em 1871, depois da Guerra Franco-Prussiana, em que tropas alemãs vitoriosas ocuparam Paris. A partir dessa altura a França tinha na sua fronteira um vizinho geograficamente maior que ela, com população de tamanho similar, mas com uma taxa de crescimento maior e mais industrializado. A Alemanha sempre tivera problemas geográficos maiores que os da França. A planície do norte da Europa dava-lhe duas razões para ter medo: a ocidente os alemães tinham a França, vizinha há muito unificada e poderosa. E a oriente tinham a Rússia, um gigante a perder de vista. Seu medo supremo era que ambas as potências atacassem simultaneamente através da planície. Nunca poderemos saber se isso teria acontecido, mas o medo que provocou produziu consequências. A França tinha medo da Alemanha, a Alemanha tinha medo da França, e quando a França se uniu à Rússia e à Grã-Bretanha, na Tríplice Entente de 1907, a Alemanha teve medo dos três. Havia agora também outra dimensão: a Marinha Britânica podia, quando bem entendesse, bloquear o acesso alemão ao mar do Norte e ao Atlântico. A solução, por duas vezes, foi atacar a França primeiro. 

Exauridos pela Segunda Guerra Mundial, e com a segurança “garantida” pelas Forças Armadas Americanas, os europeus lançaram-se numa assombrosa experiência que é hoje a União Europeia. Os europeus tinham que, de uma vez por todas, confiar uns nos outros. O que é agora a União Europeia foi estabelecido de modo que a França e a Alemanha se estreitassem num abraço tão amoroso que nenhuma das duas pudesse libertar um braço para dar um soco na outra. Funcionou brilhantemente e criou um enorme espaço geográfico abarcando a maior economia do mundo. Funcionou particularmente bem para a Alemanha, que ressurgiu das cinzas de 1945 e usou em seu benefício a antes temida geografia. A Alemanha passou a ser o grande fabricante da Europa. Em vez de enviar exércitos através das regiões planas, enviou mercadorias, especialmente VW, BMW e Mercedes.

Os países da Zona Euro concordaram em continuar economicamente casados, como os gregos ressaltam, “na saúde e na doença”, mas quando a crise económica de 2008 explodiu, as relações azedaram porque os países mais ricos tinham de auxiliar os mais pobres. Agora com a crise pandémica volta a esperança de se darem bem, mesmo sem abraços que o vírus não deixa. Oxalá, volto a lembrar o Brexit, um profundo golpe psicológico para o sonho europeu. Os alemães sabem instintivamente que, se a União se fragmentar, os velhos medos da Alemanha ressurgirão, sobretudo porque agora ela é de longe a nação europeia mais populosa e rica, com 82 milhões de habitantes, e a quarta maior economia do mundo. Uma União fracassada também prejudicaria a Alemanha economicamente: o terceiro maior exportador de bens do mundo não quer ver o seu mercado mais próximo fragmentar-se no protecionismo.

Um outro problema surge no início de 2016, quando, pela primeira vez em meio século, a Suécia começa a verificar os documentos de viajantes provenientes da Dinamarca. Dava-se início a uma das mais graves ameaças à estabilidade da União Europeia, em termos geopolíticos, resultante do maciço número de refugiados e migrantes a chegar à Europa vindo do Levante e Norte de África, enquanto o Estado Islâmico atacava Paris em novembro de 2015 através de jovens muçulmanos europeus de segunda e terceira geração, adeptos fanáticos da jihad islâmica. A ideia de “espaço Schengen” da União Europeia, uma área de livre circulação compreendendo 26 países, sofreu alguns golpes pesados, com diferentes países em diferentes momentos reintroduzindo controlo das fronteiras por razões de segurança. Temendo um congestionamento, a Dinamarca começou então a verificar os documentos das pessoas que cruzavam a fronteira a partir da Alemanha. Tudo isso tem um custo económico, torna as viagens mais difíceis e é um ataque físico e conceptual à ideia de "paz na Europa". Alguns analistas começaram a falar não de Paraíso, mas de Fortaleza. As tentativas de reduzir o volume de imigração não levava em conta a Demografia e a História.  

Na última década do século XX pensava-se que as melhores cabeças do pensamento de esquerda estava a dar bons frutos com a ideia de multiculturalismo. Multiculturalismo, todavia, não era de todo um cosmopolitismo, mas uma forma de permitir que cada comunidade se expressasse de acordo com os seus próprios princípios. Por isso, uma certa fação islâmica radical começou a matar com ataques terroristas por discordar dos valores culturais mais sagrados dos europeus. Sentem-se com liberdade de matar por discordarem da liberdade de expressão. Podem-se construir mesquitas nos países da Europa, mas nos seus países de origem proíbe-se a existência de uma igreja cristã; por isso, as mulheres ocidentais são obrigadas a cobrir o cabelo nesses países. Mas a reciprocidade nos países europeus já não pode ocorrer. Em suma, comunidades inteiras não acatam o pluralismo e o cosmopolitismo, e os teóricos do multiculturalismo não dizem nada. Não fazem nada. Comunidades inteiras comportam-se como se estivessem no seu país de origem, e o "politicamente correto" aconselha que perante isso tenhamos falinhas mansas, porque ainda corremos o risco de sermos acusados de racismo e islamofobia. 

Se não formos exigentes e duros com certos radicais, perdemos batalhas fundamentais: a de poder acolher migrantes pacíficos e que nada têm a ver com isto; a do convívio são com outras religiões, designadamente o islamismo pacífico; a das fronteiras abertas. E ainda pior, abrir o flanco a populistas e extremistas de direita e de esquerda. A população branca tradicional da Europa está velha. E os militares sabem muito bem o que isto quer dizer: se houver uma guerra a sério, os europeus não têm energia suficiente para a luta. Projeções populacionais preveem uma pirâmide invertida, com pessoas mais velhas no topo e, na base, menos jovens. Entretanto, essas previsões não levaram em conta a grande discrepância entre a natalidade da velha população indígena, e a população muçulmana nativa. Essa mudança demográfica, por sua vez, tem um efeito sobre a política externa dos Estados-nação, em particular em relação ao Médio Oriente. Em questões como a Guerra do Iraque ou o conflito Israel–Palestina, por exemplo, muitos governos europeus devem, no mínimo, levar em conta os sentimentos dos seus cidadãos muçulmanos ao formular as suas políticas.

Agora a União Europeia só pode rezar para que Alemanha e a França sejam parceiras naturais. Mas somente a Alemanha tem um plano B: a Rússia. O fim da Guerra Fria viu a maior parte das potências continentais reduzir os seus orçamentos militares e as suas Forças Armadas. Foi preciso o choque da guerra russo-georgiana de 2008 e a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 para que a atenção se concentrasse na possibilidade de que o problema imemorial da guerra na Europa retornasse. Agora os russos efetuam regularmente missões destinadas a testar os sistemas de defesa aérea europeus e estão ocupados com a Ossétia do Sul, Abecásia, Crimeia, Transnístria e Ucrânia oriental. Eles mantêm os vínculos com russos étnicos nos países bálticos, e ainda têm o seu enclave de Kaliningrado no mar Báltico. E por último o Nagorno-Karabakh que se reacendeu. Há dias, horas depois do cessar-fogo que punha fim a seis semanas de conflito, quase 2000 membros das forças russas chegaram à região disputada. Azerbaijanos recuperam importantes territórios perdidos na guerra dos anos 1990. E a Rússia, Arménia e Azerbaijão assinam um acordo para o fim da guerra.

Os europeus começam agora a fazer algumas revisões dos cálculos para os seus gastos militares. Mas não há muito onde ir buscar o dinheiro. Enquanto debatem essas decisões, tiram o pó dos mapas e diplomatas e estrategistas militares observam que, embora as ameaças de Carlos Magno, Napoleão, Hitler e dos soviéticos tenham desaparecido, a planície do norte da Europa, o Cáucaso e os Cárpatos, o mar do Norte e mar Báltico ainda estão ali.


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