segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O primado do Direito na construção dos Estados Modernos na Europa Ocidental


A União Europeia está confrontada com um dilema existencial que, mais tarde ou mais cedo, terá de resolver. Durante demasiado tempo tentou ignorar o caminho populista de dois Estados-membros. Já havia regras nos tratados – nomeadamente, o Artigo 7.º do Tratado de Lisboa – que tentavam antecipar uma deriva antidemocrática de um ou mais países. Havia um debate, sobretudo interno ao PPE, que reúne os partidos de centro-direita europeus, sobre o que fazer um dos seus membros – o Fidesz de Viktor Orbán. Prevaleceu um sentimento de complacência, numa atitude muito europeia de esperar que o problema acabe por desaparecer por si. Pode ser uma regra aceitável numa comunidade com 27 Estados soberanos. Deixa de o ser quando o que está em causa são os princípios fundadores da integração europeia, claramente expressos na letra dos Tratados. A Europa comunitária é uma união de democracias liberais, que assenta no respeito pelos direitos humanos, pelas minorias e pelo Estado de direito. A própria União distingue-se de todas as outras organizações internacionais por assentar num conjunto de normas comuns que os seus membros, para poderem ser membros, se comprometem a aceitar. [Teresa de Sousa]

A sociedade europeia é individualista desde os primórdios, no sentido em que os indivíduos, e não as suas famílias ou grupos de parentesco, podiam tomar decisões importantes relativas ao casamento, à propriedade e a outros assuntos pessoais. O individualismo a nível familiar é o fundamento de todos os outros individualismos. O individualismo não esperou pela emergência de um Estado que estipulasse os direitos legais dos indivíduos e utilizasse o seu poder coercivo para os garantir. Em vez disso, os Estados formaram-se em sociedades nas quais os indivíduos já desfrutavam de uma considerável liberdade relativamente às obrigações sociais de parentesco. Na Europa, o desenvolvimento social precedeu o desenvolvimento político. 

O padrão matrimonial na Europa Ocidental, depois da sua estabilização após a queda do Império Romano a Ocidente, processou-se de maneira diferente de praticamente todas as outras partes do mundo. Na Europa Ocidental, tanto os homens como as mulheres tendiam a casar-se mais tarde. E existia um número global mais elevado de indivíduos que nunca casavam. Ambos os casos determinavam taxas baixas de natalidade. Existiam também mais mulheres jovens no mercado de trabalho e uma maior igualdade entre famílias, devido ao facto de as mulheres, em virtude do seu casamento tardio, terem mais oportunidades de adquirir propriedades. Este padrão está bem documentado para o período entre 1400 e 1650. Mas quando é que ocorreu o abandono do parentesco na estrutura governativa por parte dos europeus e, se não foi política, qual a força motriz por trás dessa transformação? Esse abandono ocorreu nas tribos germânicas quando, para lidar com a herdeira do Império Romano – a Igreja Cristã em Roma – se converteram ao Cristianismo. As tribos germânicas, normandas, magiares e eslavas viram as suas estruturas de parentesco dissolvidas no espaço de duas gerações após a sua conversão ao Cristianismo.

É claro que todos os povos ancestrais dos atuais europeus estiveram nos tempos primordiais organizados de maneira tribal. As suas formas de parentesco, leis, costumes e práticas religiosas começaram a ser documentados pelos estudiosos do século XIX que vieram depois a dar em antropólogos. Todos eles eram comparatistas com um vasto conhecimento de diferentes culturas. E todos eles repararam nas semelhanças da organização agnática (linhagem masculina) do parentesco entre sociedades tão distantes umas das outras como a hindu, a grega e a germânica. Ou seja, uma numerosa família a que os linguistas cunharam com a designação de “indo-europeus”. A designação ‘agnática’ quer dizer que a linhagem da descendência é alinhada pelo lado paterno. Geralmente, envolve a herança de propriedades, nomes, ou títulos através da linha masculina.

Na Europa, o abandono do parentesco complexo ocorreu primeiro a nível social e cultural, em vez de a nível político. Ao alterar as regras do casamento e das heranças, a Igreja atuou, de certa forma, politicamente e por razões económicas. Mas a Igreja não detinha a soberania sobre os territórios em que atuava; era, em vez disso, um ator social cuja influência residia na sua capacidade de definir regras culturais. Na Europa medieval, antes de ter começado o processo de construção do Estado Moderno por via da Reforma, do Iluminismo e da Revolução Industrial, já se encontrava em formação uma sociedade muito mais individualista do que em qualquer outra parte do mundo.

A mudança a nível da família foi provavelmente uma condição facilitadora para que a própria modernização pudesse ocorrer. Uma economia capitalista emergente em Itália, Inglaterra e nos Países Baixos no século XVI não teve de superar a resistência de grandes grupos de parentescos organizados corporativamente e com patrimónios substanciais a defender, como aconteceu na Índia, China e Médio Oriente, onde a família e o parentesco ainda hoje continuam muito fortes. Ainda existem linhagens segmentárias integrais em Taiwan e no Sul da China. Os casamentos na Índia continuam a ser mais uma união entre famílias do que entre indivíduos. E a filiação tribal permanece omnipresente no Médio Oriente árabe, particularmente entre os povos de origem beduína. O Estado turco foi extremamente bem-sucedido na redução da influência da organização tribal no interior da Anatólia e dos Balcãs, mas muito menos nas províncias árabes, onde governou de forma mais moderada. Na verdade, o Estado Otomano exerceu escassa autoridade sobre as comunidades beduínas periféricas, cuja organização tribal permaneceu intocada até aos dias de hoje.

Ora, no caso da Europa do centro norte e leste, como é o caso da Polónia e da Hungria, não significa que os construtores destes Estados se movessem num terreno livre de instituições sociais entrincheiradas. Não existiam clãs nem tribos, mas existia uma nobreza de sangue que havia acumulado riqueza, poder militar e estatuto legal durante o período feudal. O facto de essas instituições sociais serem feudais, em vez de baseadas no parentesco, fez uma enorme diferença para o desenvolvimento político europeu posterior. A relação feudal de vassalagem era um contrato estabelecido voluntariamente entre um indivíduo mais forte e outro mais fraco, que prescrevia obrigações legais a ambas as partes. Ainda que formalizasse uma sociedade altamente desigual e hierárquica, avançou em todo o caso precedentes tanto para o individualismo (uma vez que os contratos eram estabelecidos entre indivíduos e não entre grupos de parentesco), como para o alargamento do entendimento do que era a personalidade jurídica. 

Ora, o orçamento da União é um tema delicado para o sr. Orbán. Foi com ele que o seu pai ficou multimilionário, que o seu genro ficou multimilionário, que o seu irmão ficou multimilionário, e que vários dos seus amigos de infância se tornaram os homens mais ricos da Hungria, numa verdadeira concentração de talento empreendedor só possível com a proximidade ao homem que distribui no país o dinheiro que nós, com os nossos impostos, pagamos à União. É absolutamente necessário para Orbán que as coisas continuem como estão, e por isso estará disposto a vetar tudo até que tenha as garantias de que não há mecanismo de Estado de direito, artigo 7 ou quaisquer condições políticas ao uso do dinheiro (mas ele continuará a apoiar que outros países sejam sujeitos a procedimentos apertados por umas décimas de défice). [Rui Tavares]

A substituição das instituições locais assentes no parentesco pelas instituições feudais teve um impacto político importante na eficácia do governo local. Tanto as linhagens como as instituições feudais assumiam uma função de soberania e governação em diversos domínios, particularmente quando os Estados centrais eram fracos. Podiam providenciar segurança a nível local, bem como administrar a justiça e organizar a vida económica. As instituições feudais eram inerentemente mais flexíveis, por estarem baseadas no contrato, e eram capazes de organizar a ação coletiva de forma mais eficaz, por serem menos hierárquicas. A partir do momento em que eram legalmente estabelecidos, os direitos de um senhor feudal não eram sujeitos a renegociações constantes, como acontecia com a autoridade no interior da linhagem.

O direito legal à propriedade, quer fosse detido pela parte forte quer pela parte fraca, incluía claramente o poder de o comprar ou de o vender, sem os limites impostos por um sistema social baseado no parentesco. Um senhor local podia falar decisivamente em nome da comunidade que representava, de uma forma que um líder tribal não podia. Um erro cometido habitualmente pelos colonizadores europeus em África e na Índia foi presumir que a liderança tribal equivalia à autoridade de um senhor local numa sociedade feudal, quando estas eram efetivamente muito diferentes.

Mas, porque é que certos valores religiosos, como é o caso na Polónia, são promovidos ainda hoje? Tal deve-se à forma como se enraizou originalmente. A Igreja Católica é o exemplo paradigmático, ao ter conseguido desmantelar o sistema de parentesco alargado, apesar de não resultar diretamente da doutrina cristã. A Igreja Ortodoxa Oriental de Constantinopla não fez qualquer esforço semelhante para alterar as leis do casamento e da herança. O facto de essas instituições terem desaparecido na Europa Ocidental esteve muito mais relacionado com interesses materiais e de poder da própria Igreja, cujo controlo sobre os valores sociais foi usado em benefício próprio.

A Igreja Católica acabou por ser institucionalizada, enquanto ator político independente, a um nível muito superior ao das autoridades religiosas na Europa norte-oriental. A influência oriental nunca desenvolveu uma religião autóctone mais sofisticada do que a adoração de antepassados. A religião servia como instrumento de limitação do poder político. A autoridade religiosa nunca se consolidou numa única instituição burocrática centralizada fora da esfera do Estado. A forma como as coisas evoluíram na Europa Ocidental prende-se com aquilo a que chamamos hoje o primado do Direito. A propriedade privada emergiu não só devido a razões económicas, mas também porque as linhagens necessitavam de um sítio onde enterrar os seus, e tranquilizar-lhes a alma.

Sem comentários:

Enviar um comentário