segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Não se pode explicar o inexplicável




Quando pergunto a mim mesmo, por exemplo, como se chegou a um flamingo ou a um peixe espada, o tipo de explicação que preciso não é a explicação que um físico dá, por exemplo, como se chegou a um Ferrari de Fórmula 1, e coisas assim. Ele limita-se a explicar como funciona um automóvel, e nada mais. Nem nos satisfaz a explicação que um biólogo dá, dizendo que um animal é uma coisa muito complexa, fruto de uma evolução por tentativa e erro da natureza na Terra, por mais de treze mil milhões de anos.

Coisas complexas como carros ou animais explicam-se assim, não havendo mais nada para explicar. O padrão de compreensão do físico é o padrão das coisas simples e das leis naturais. E o padrão de compreensão do biólogo é a complexidade, mas desdobra-a em coisas simples, de que é feita a complexidade, da mesma maneira que faz o físico. E considera a sua tarefa concluída chegado às entidades simples. A partir daqui passa o caso para as mãos do físico em segurança, e este explica o resto.

Mas não é deste paradigma da ciência que estou a falar, quando pergunto como o Universo, a partir do big bang, chegou ao animal. O que quero saber é, quando o físico se debruça sobre o big bang, se ele  consegue vislumbrar o nosso surgimento passado treze mil milhões de anos. De certeza que não encontra nenhuma razão para que se formem tantas variedades de seres vivos (animais e plantas), quando apenas vê hidrogénio e depois uma certa poeira cósmica a formar estrelas e galáxias. Por conseguinte, o problema que eu coloco nas mãos do físico é diferente do problema que o biólogo lhe coloca. O meu problema é, digamos, de ordem metafísica, nada menos do que o problema das últimas causas e últimas consequências.

A ideia é que, em física, um agregado pode ser apenas a soma das suas partes. Mas um grupo social é sempre mais do que a soma dos seus membros, porque é nas relações entre as pessoas que reside a parte essencial de uma comunidade de pessoas, e, portanto, da sociedade em geral. É a dinâmica dos comportamentos que está em causa. Daí a questão do estatuto das ciências sociais. E a questão é mal colocada se se usa a física como termo de comparação. É claro que, dada a natureza dos fenómenos que estudam, cada uma tem especificidades quanto à sua metodologia. 

Em metafísica o jargão é do género: que amanhã choverá é uma afirmação a posteriori, isto é, a sua verdade ou falsidade não pode ser determinada sem nos basearmos em algum indício testemunhado pelos sentidos; já 2+2=4 é uma afirmação a priori, uma vez que a sua verdade ou falsidade depende exclusivamente da parte do nosso cérebro que trabalha a matemática. Nenhuns indícios podem vir de fora do nosso cérebro, na natureza obviamente, e não nos artefactos que entretanto construímos, porque isso seria fazer batota. É claro que tanto na física como noutras áreas científicas haveria experiências potencialmente reveladoras se fosse possível realizá-las. Mas sabemos que existem sempre limitações metodológicas e tecnológicas para as nossas criações matemáticas. Nestes casos os cientistas limitam-se a fazer as experiências dentro das suas cabeças. A ciência é uma atividade humana cujas características possuem uma dimensão metodológica e sistemática. É uma atividade em que não pode valer tudo, porque implica uma investigação focada dentro de parâmetros específicos, por forma a contribuir para um corpo de conhecimento sólido e coerente.

O que o químico nos diz, quando estuda o 2º princípio da termodinâmica, é que qualquer ser vivo trabalha para adiar a morte. O 2º princípio da termodinâmica expressa, de uma forma concisa, que a quantidade de entropia de qualquer sistema, termodinamicamente falando, tende a incrementar-se com o tempo, até alcançar um valor máximo. A energia tende a distribuir-se por igual, até que o sistema alcance um equilíbrio termodinâmico. Enquanto 1º princípio da termodinâmica responde pela conservação de energia em qualquer transformação; o 2º princípio da termodinâmica responde pelas condições necessárias para que as transformações termodinâmicas ocorram espontaneamente. É um axioma relacionado com a transformação de calor em trabalho em processos cíclicos. O trabalho resulta do facto de haver transferência térmica se duas fontes de calor estiverem a temperaturas diferentes. 

Entregue a si próprio, o corpo quando morre deixa de ter as propriedades que são diferentes da sua envolvência, revertendo o seu estado para um estado de equilíbrio com o seu ambiente. Os nossos corpos estão habitualmente mais quentes do que o meio ambiente que nos rodeia. E os nossos corpos em climas muito frios, como é o caso do corpo dos esquimós, têm de trabalhar muito para manter o diferencial – digamos entre zero graus celsius ambientais e 37 graus celsius corporais. Quando morremos, o corpo deixa de trabalhar, e a diferença de temperatura entre o corpo e o meio ambiente vai desaparecendo até se igualar. Podíamos dar outros exemplos, como no deserto, os animais e as plantas enquanto vivos trabalham para contrariar a saída da água do seu corpo, porque essa seria a tendência natural ditada pelas meras leis físicas, o que só acontece com o corpo morto. Portanto, genericamente, se animais e plantas não trabalhassem de forma ativa, deixariam de ser corpos autónomos e fundir-se-iam com a natureza envolvente.

Estando a ler 
o último Diário de Vergílio Ferreira [1916-1996], com o título genérico de Conta-Corrente - 1992, retiro o seguinte desabafo deste escritor existencialista:
«É isto. O tal princípio da termodinâmica deve estar a confirmar-se em mim. Porque estou a chegar a um ponto de indeterminação, confusão, mistura, caos. O único sentimento que vai prevalecendo em mim é o do medo. De quê? De nada, ou seja, de tudo. Chegado a velho, as pessoas imaginam que ou um macaquinho para mostrar. E se calhar já devo estar taralhouco. Porque é que o estupor do romance não avança em força? Para onde vamos? Daqui a cinquenta anos o mundo humano será inteligível se ainda o houver? Superpopulação, supertecnologia, mutação biológica, morte das ideologias, desvalorização do homem e o assassinato gratuito.»
Quando em 1968 foi publicada em Portugal a tradução de Les Mots et les Choses de Michel Foucault, vinha com dois prefácios antes do prefácio do próprio autor: o de Eduardo Lourenço sob o título – Michel Foucault ou o Fim do Humanismo; e o de Vergílio Ferreira sob o título – Questionação a Foucault e a algum Estruturalismo. Ora este texto deu origem a uma polémica entre Eduardo Prado Coelho [1944-2007] e Vergílio Ferreira. Os textos de Eduardo Prado Coelho foram publicados na Página Literária do Diário de Lisboa de 11, 18 e 25 de abril de 1968; e os de Vergílio Ferreira na mesma Página Literária em cinco dias de maio do mesmo ano. E a polémica foi de tal modo animada que mais tarde nenhum deles se orgulhou muito, porque terá assentado num equívoco que em vez de manter dentro das balizas da epistemologia filosófica descambou para a filosofia política. Ora, as perguntas que se fazem em filosofia política não é como as coisas são, mas como devem ser. E este tipo de abordagem é do domínio normativo e não do domínio epistemológico. É pouco sensato, para sabermos se certas medidas, que fazem parte do normativo político, são boas ou más, procurar uma resposta absoluta no tribunal da experiência científica. 
Enquanto Vergílio Ferreira reagia às considerações de esquerda de Eduardo Prado Coelho, à luz de uma conceção de esquerda nos termos da esquerda cultural tradicional; Eduardo Prado Coelho, estando mais à frente, avant la lettre, a sua conceção de esquerda já era uma esquerda pós-moderna, na linha dos continuadores de Foucault -  Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Jacques Lacan e Félix Guattari.

Um aspeto a merecer investigação é o porquê de a estratégia epistemológica da esquerda política ter derivado em ceticismo e relativismo. A linguagem é o centro da epistemologia pós-moderna. Em suas argumentações sobre temas específicos da filosofia, da literatura e do direito, os modernos e os pós-modernos (mantenhamos este jargão da gíria habitual para simplificar as coisas) diferem não apenas quanto ao conteúdo, mas também nos métodos de empregar a linguagem. A epistemologia é a causa dessas diferenças. Nas palavras de Jacques Derrida, a linguagem é um sistema interno, autorreferencial, e não há como sair dela. Não existe nenhum padrão não linguístico ao qual relacionar a linguagem, portanto, não pode haver nenhum padrão que permita distinguir o literal do metafórico, o verdadeiro do falso. Então, em princípio, a desconstrução é um processo interminável.

Para os modernos, a funcionalidade da linguagem é complementar ao facto de ser cognitiva. O indivíduo observa a realidade perceptualmente, forma crenças conceptuais sobre a realidade com base em suas perceções e, então, age na realidade a partir desses estados cognitivos da perceção. Algumas dessas ações no mundo são interações sociais, e em algumas dessas interações a linguagem assume uma função comunicativa. Ao se comunicarem entre si, os indivíduos narram, argumentam ou tentam passar adiante as suas crenças cognitivas sobre o mundo. A retórica, portanto, é um aspeto da função comunicativa da linguagem; refere-se aos métodos do uso da linguagem que auxilie a cognição com eficácia durante a comunicação linguística. Para o pós-modernos, a linguagem não pode ser cognitiva porque ela não se relaciona com a realidade, seja essa realidade material ou espiritual. A linguagem não tem a ver com estar ciente do mundo, ou distinguir entre verdadeiro e falso. A epistemologia coloca duas perguntas sobre a linguagem: qual é a relação da linguagem com a realidade; e qual é a sua relação com a ação? As questões epistemológicas sobre a linguagem constituem um subconjunto de questões epistemológicas sobre a consciência em geral. Os modernos e os pós-modernos têm respostas radicalmente diferentes a essas perguntas. Para os realistas modernos, o propósito primário da consciência é estar ciente da realidade. O seu propósito complementar é usar essa cognição da realidade como guia para atuar nela. Para os antirrealistas pós-modernos, ao contrário, a consciência é funcional, mas não cognitiva. Por isso, a sua funcionalidade nada tem a ver com a cognição. Para os pós-modernos a realidade não pode ser resolvida na interpretação. A interpretação está fechada dentro da linguagem E a linguagem comunica apenas com mais linguagem, nunca com uma realidade não linguística.

Para os positivistas lógicos da linhagem de Karl Popper, Alfred Ayer ou Hans Reichenbach, o que distingue as afirmações científicas das da lógica, filosofia, religião, literatura, etc., é a sua veracidade poder ser definida por meio de testes empíricos. Pode-se fazer a experiência de a água ferver a 100º C, e congelar a 0º C, mas não existe nenhuma experiência que nos possa elucidar se matar é errado. As afirmações éticas não podem ser verificadas apelando à experiência. As questões éticas estão condenadas a discussões infindáveis. O que está em causa nas discussões sobre ética é a expressão de preferências que são em parte determinadas por fatores psicológicos e culturais sobre os indivíduos ou os grupos que as expressam. A larga maioria das pessoas defende que matar é errado porque em relação a isso desencadeiam dentro de si emoções negativas que as fazem sofrer. Isso não significa que esses estados psicológicos não possam ser estudados cientificamente pelas ciências psicológicas e sociais. Portanto, estas disposições éticas não descrevem como as coisas são, mas emitem diretivas ou manifestam desejos, o que quer dizer que não cabem no critério de as definirmos como verdadeiras ou falsas.

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