domingo, 15 de novembro de 2020

Os negacionistas e as falácias




Muitas vezes os negacionistas em relação à gravidade da covid-19 apresentam argumentos válidos, ou seja, a conclusão segue-se das premissas, mas não são sólidos. E porquê? É que um argumento para ser sólido, para além de ter de ser válido logicamente, as suas premissas têm de ser verdadeiras. E é esse o problema dos negacionistas, os seus argumentos estão cheios de falácias. O que acontece é que os seus argumentos geralmente não utilizam premissas verdadeiras. Constroem os argumentos de modo a satisfazerem as suas crenças ou preferências ideológicas. Ambiguidades e contradições, isto é, a utilização de palavras com sentidos diferentes, são erros que resultam em falácias muito frequentes nos argumentos dos negacionistas. Negam, por exemplo, que estejamos a viver uma situação de uma pandemia viral, e que a doença, chamada covid-19, seja real. E por isso, entre as várias proclamações, contestam o uso da máscara. E mais do que isso, negam a ciência. Negam a importância das vacinas para a saúde mundial, por exemplo, alegando que há poderes ocultos a usá-las para inocular informação nas pessoas a fim de controlar a humanidade. 

O sítio ideal para a propaganda das ideias negacionistas, obviamente, são as chamadas redes sociais. E uma vez que é o seu meio predileto, para além da rua claro está, aqui também negam aquilo que não lhes é conveniente, que os algoritmos das redes sociais foram desenhados com o propósito de controlar as pessoas. A verdade perdeu validade. A partir do momento em que se pode negar tudo, então nada é verdadeiro, e tudo é permitido. E o mais surpreendente é que o negacionismo e as teorias da conspiração não poupam alguns médicos e alguns filósofos, o que apesar de não terem de ser cientistas tinham obrigação de perceber o que é o conhecimento alicerçado na ciência. Por exemplo, Giorgio Agamben, um filósofo italiano, é um desses negacionistas. E no entanto, é um filósofo da moda pós-moderna, com grande notoriedade e número de adeptos. De resto, já não falo em Trump ou Bolsonaro, duas figuras mais do que bem conhecidas e que dispensam apresentações.  

Em suma, o negacionismo é a atitude consciente de negar a realidade, que para além de ser movida por mais do que um propósito, também funciona como a vassoura que varre os factos para baixo do tapete,  isto é, para que de uma forma ilusória a negação da realidade os faça escapar de uma verdade que lhes é muito desconfortável e inconveniente. Trata-se da recusa em aceitar uma realidade empiricamente verificável, que o mesmo é dizer demonstrável cientificamente, o método mais eficaz que a sociedade mundial até à data conseguiu obter para conhecer a realidade tal como na verdade é, e à qual a vida humana está sujeita, queiramos ou não. Por conseguinte, o cientista não tem outra forma de colocar o negacionista noutros termos que não sejam revestidos de grande perversidade e prejuízo para o bem de todos nós, quando de uma forma irresponsável e leviana colocam em risco a vida, sobretudo das pessoas mais frágeis e desfavorecidas, por não levarem a sério não apenas os conhecimentos conseguidos pela ciência, mas os conceitos mais básicos e consensuais adquiridos e consolidados pela humanidade ao longo de séculos de civilização. 



Há uma outra espécie de negacionistas que não são bem da estirpe dos negacionistas que venho expondo: os oportunistas; os ignorantes. Os oportunistas são aqueles que encontram na retórica a única forma de darem nas vistas. Além de dizerem disparates, lançando o caos e a desinformação, exacerbam preconceitos e suspeições totalmente infundadas. Os ignorantes são aqueles que com arrogância recusam as conclusões da ciência, e sobretudo quando é posto em causa o seu comportamento troglodita. São deste grupo os que também negam as alterações climáticas com falácias esfarrapadas, apresentando como argumento de autoridade para as suas ideias gente do género de Trump e Bolsonaro. Estes negacionistas ignorantes são os que enchem as caixas de comentários, e vão para a rua engrossar rebanhos de palermas sem máscara nem distanciamento com ditos e frases bizarras em cartazes de todos os tamanhos e feitios. 

Este fenómeno não é exclusivamente português. Todos os dias as televisões registam imagens vindas de todos os pontos do mundo supostamente civilizado como, por exemplo, a Alemanha e o Estados Unidos. Imagens de Berlim, nas Portas de Brandemburgo, milhares de manifestantes, lado a lado, sem máscara no rosto, gritando palavras de ordem como: "nós somos a segunda onda" ; "resistência". Sob o dúbio lema "Tag der Freiheit - das Ende der Pandemie" (Dia da liberdade - o fim da pandemia), os manifestantes protestaram contra as medidas do governo alemão para conter a disseminação do novo coronavírus. "Dia da liberdade" pode soar inofensivo, mas é também o título de um filme de propaganda nazi dirigido por Leni Riefenstahl, um ícone do nazismo, sobre a convenção do partido nazi NSDAP em 1935 e focado na Forças Armadas do país. O primeiro grupo a convocar a manifestação foi o controverso Querdenken 711, de Stuttgart (711 é o prefixo telefónico de Stuttgart). Essa organização, formada sobretudo por militantes contra as vacinas já convocara protestos semelhantes na capital de Baden-Württemberg, até então os maiores na Alemanha. Desta vez, milhares de pessoas de outros estados seguiram a convocação e foram para Berlim. Segundo a polícia, o protesto reuniu 20 mil pessoas.  A bandeira com listas horizontais: preta, branca e vermelha – a antiga bandeira do Império Alemão – é hoje um símbolo da extrema direita alemã. Os chamados Reichsbüger grupos de extrema direita que usam a bandeira imperial para expressar a sua rejeição à democracia alemã. E para contestar o banimento público dos símbolos nazis. Ao lado deles marchavam também outras pessoas que exibiam bandeiras com o símbolo hippie da paz ou a bandeira do arco-íris, originalmente um ícone pacifista normalmente usado pelo movimento LGBT, e cartazes com dizeres como "Jesus vive".

A propósito daquela frase, um parentese para falar de um outro tipo de negacionismo, diferente deste, o que nega que Jesus, ou Sócrates tenham existido. Ou pelo menos que tenham dito e feito respetivamente o que os Evangelistas dizem nos Evangelhos, ou o que Platão diz nos seus diálogos. Como Sócrates e Jesus nada tenham deixado: nomeadamente documentos escritos por eles; e pela forma como ambos morreram – é tudo demasiado misterioso para não cheirarem a esturro. Por que razão os tinham que condenar à morte? Parece tudo muito forçado. Terá tudo acontecido como Platão, Marcos, Mateus e Lucas deixaram escrito? O Oráculo de Delfos dissera: "Sócrates é o mais sábio de todos". Mas a razão por que ele era sábio, é a seguinte: Sócrates dissera que só sabia que nada sabia. Compreendera quão ignorante ele era. Uma afirmação que trazia água no bico, porque mostrava aos outros que também eles eram ignorantes. E isso foi o seu problema, porque os seus interlocutores ficaram furiosos com isso. Então, para manifesto desagrado deles, tinha que se concluir, que todas as suas opiniões estavam erradas. É assim que se conjetura que a vontade deles foi livrarem-se de Sócrates. E isso justifica a sua condenação à morte? Os atenienses tinham orgulho das suas instituições democráticas. Mas Sócrates era o crítico mais feroz da democracia. Os democratas governavam por via do seu talento e sabedoria. Sócrates detestava os sofistas, porque era devido às suas medíocres capacidades que as massas eram influenciadas com retórica vazia. Ora, eram os mais influentes sofistas da altura que controlavam o poder através da arte da persuasão.

Heiko Schrang, um teórico de meia-tigela, nos seus vídeos YouTube, alterna entre denúncias de uma suposta manipulação da sociedade por meio da imprensa "mainstream" e declarações de que a pandemia é uma mentira. E acicata a população para que não se deixe ser  mandada por "aqueles lá de cima". Essa ampla gama de teóricos da conspiração arranjou alguns inimigos em comum: o Estado alemão, Bill Gates e a chamada "conspiração sionista". Na visão do ‘mundo alternativo’, criada por eles, as teorias mais indigeríveis fazem sentido, são ajustadas entre si e se complementam. Aí veio um duro golpe para eles: o confinamento da primeira vaga tinha sido eficaz na Alemanha, bem como as máscaras e as medidas de distanciamento social. A população estava, em geral, satisfeita, e a adesão às ideias dos teóricos da conspiração caiu. Mas, agora, nesta segunda vaga o movimento negacionista ganhou novo impulso. Quando 20 mil pessoas saíram às ruas de Berlim, Jebsen e Hildmann transmitiram ao vivo, do local onde estavam, pelos seus canais YouTube, elogiando os "lutadores pela liberdade". Assim como outros apoiantes da manifestação difundiram um número descaradamente falso de participantes. Muitas pessoas na manifestação usavam t-shirts publicitando um livro de Heiko Schrang, a grande estrela do dia que no palco incentivava e animava os participantes. E prometia um futuro melhor: a libertação da ditadura da covid-19 havia finalmente começado. O seu discurso, que está no YouTube, foi visto por 13 mil pessoas apenas nas primeiras horas depois de publicado.

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