domingo, 29 de novembro de 2020

Crónica do acordar de um doente que havia passado por uma Unidade de Cuidados Intensivos


Hoje, com a infeção devido à covid-19 a acelerar o tempo, 80% dos óbitos em Portugal estão a ocorrer nos hospitais, e muitos deles em unidades de cuidados intensivos. 

Anos 1970 em Portugal, 20% dos óbitos ocorriam nos hospitais. Ainda andava por perto a memória de os hospitais serem mais hospícios, ou mesmo asilos, do que clinicas salva-vidas.

Longe vai o tempo em que tudo se passava em casa com a família ao lado. Nos Cuidados Intensivos a família não pode estar. Por outro lado, a morte transformou-se num acontecimento estranho, e distante, para reduzir ao mínimo as evidencias da nossa finitude. 




Anos 1990 em Portugal, o médico de saúde pública Pedro Serrano, que havia acabado de ser operado ao coração, começa a cair em si por volta das três horas da madrugada, ofuscado por umas luzes de presença que mais parecem de uma cabine de avião de longo curso. Lança os olhos em volta, mas não vê nada. Parece que está tudo deserto. As dores de garganta e a sede são brutais. Até que começa a ver alguma coisa a mexer-se lá ao fundo. Tenta mover o braço esquerdo para chamar, mas não consegue, porque está preso a um tubo fino de soro que lhe entra no braço pela prega do cotovelo. E na ponta do dedo indicador tem metida uma carapuça luminosa ligada a um fio que desaparece no escuro.

O braço direito também tem um tubo a meter-lhe sangue no corpo, e a mão está perra. O que viu mexer, agora vê que é uma enfermeira, que se debruça sobre ele e pergunta a sorrir algo que não percebeu bem, está confuso. Então ouve uma voz de cana rachada dizer: “tenho sede". A enfermeira diz-lhe que para já não pode dar-lhe de beber, a não ser molhar os lábios com água. Vai buscar um copo com água e mergulha nele uma espátula de madeira com uma boneca de gaze na ponta. Passa-lhe a gaze húmida pelos lábios, uma e outra vez, e ele chupa o mais que pode. Depois a enfermeira retira-se, como ele diz:  "levantando voo no escuro".

Pedro Serrano começa a ficar mais desperto, mas ainda se sente como se tivesse acordado de um coma após uma grande bebedeira. Começa a ouvir uns sons estranhos, sintéticos, que lhe fazem lembrar a banda sonora da série de TV - Twin Peaks. Entretanto os seus olhos vão-se habituando progressivamente ao escuro e às luzes quebradas. E à medida que se vai irritando com o plim-plim-plim, sente-se gelado. Tenta puxar um lençol. Nada. Ele então chama em voz alta dizendo: "tenho frio, não me podia puxar o lençol para cima?"

"Não posso" - responde a enfermeira. "Temos de manter esses tubos sempre à mostra". Ele admira-se: "Tubos? Quais tubos? Como é que não os tinha visto?" Agora também repara que não está só na sala. Há corpos humanos deitados por ali fora alinhados em paralelo. Cinco ou seis também quase nus. Um corpo agita-se, a enfermeira vem e estende o braço para um monitor. Volta a dar um passo atrás e desaparece no escuro. Não quer saber de mais nada e fecha os olhos. Os sons reaparecem como se fossem gotas de um líquido a pingar num lavatório com microfone.
Fico comigo e tomo consciência de que sobrevivi à operação. Cá estou outra vez deste lado. Comovo-me e os olhos ficam encharcados. Amanheceu e deduzo que estou hospedado na Unidade de Cuidados Intensivos do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Marta. Agora com feições muito mais definidas o anjo louro aproxima-se da minha cama. Vem despedir-se: "Adeus, ET". Sorrio e levanto o dedo luminoso, com o objetivo de o encostar ao dela e, assim, cumprir o previsto no guião da história. Mas estou muito lentiforme e, entrementes, ela já voltou costas e zarpou no vácuo. 
Agora vem outra enfermeira. Espreita para baixo da cama e analisa os vários sacos de drenagem no enfiamento dos tubos que lhe saem do corpo, incluindo a algália. A seguir senta-se aos pés da cama a escrever numa mesinha. Ele pergunta-lhe pelo pequeno almoço, uma vez que vê passar bandejas para os outros hóspedes, como ele gosta de chamar. A enfermeira levantou a cabeça, arrebitou as sobrancelhas, e com um sorriso na face disse: "Para já não vai poder comer nada, sr. José; se tiver muita sede posso molhar-lhe os lábios". Ele, de repente, teve um sobressalto de estranheza, porque em todos os seus mais de quarenta anos nunca ninguém o havia tratado por “sr. José”. Pensou ele: "Este é o melhor estilo TAP que já ouvi. Para esse peditório já dei"

Entretanto passaram-se dez dias. Eis que aparece o cirurgião de serviço à Unidade. Folheia o processo que está na mesinha encostada ao fundo da cama. Pedro Serrano observa-o com atenção, e vem-lhe à cabeça uma ideia divertida: "O tipo é a cara chapada do Lou Reed. Igualzinho…, a cara, os óculos, o modo de se mover; só não tem a expressão causticada e tensa do Lou Reed. Este tem um ar tranquilo e pachorrentamente gozão." 

“Fibrilação ventricular!”, exclamou o cirurgião como se assobiasse entre dentes. "Você teve muita sorte…”. “É não é?”, responde Pedro Serrano com ar blasé, já habituado a ouvir n vezes esse comentário. "A esta hora já devia estar morto", remata Pedro Serrano. “E como!”, deixa o cirurgião escapar entre dentes, enquanto consulta os dados do processo clínico. "Você teve isto no dia dezassete, hoje são vinte e seis - são dez dias!”, diz o cirurgião enquanto olha para Pedro Serrano. E Pero Serrano não evita o pensamento: "Estás a olhar para mim dessa maneira, com ar maroto. e ainda a imaginar aquilo em que eu me podia ter transformado em dez dias de defunção". 

O cirurgião pergunta assim: "E então como se têm portado as dores?" Serrano joga à defesa e responde: "Pelo menos por agora não me dói nada, dr.". "Vamos ver se lhe conseguimos tirar isso ainda hoje".
"Hoje dr? " . "Talvez, talvez; mas só lá para a noite". E foi-se a outras unidades.

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