domingo, 29 de novembro de 2020
Há quem diga que: “Em política, o que parece, é”
“Em política, o que parece, é” – ouve-se e lê-se muitas vezes no comentário político dos dias de hoje em plena pandemia. Formar um juízo sobre a realidade é algo que está necessariamente relacionado com a perceção que se tem dessa realidade. Sempre foi assim, mas o que é novidade é os mediadores tradicionais dessas perceções estarem em muitos casos a ser ultrapassados pelos novos meios dados pelo nome de "redes sociais".
Além do meio, é o conteúdo da mensagem, que agora não se pode confiar, e muito menos levar à letra, sem que primeiro passe pelo “Polígrafo”, que ainda vai permitindo que as perceções erradas sobre a realidade, alimento de populismos, se afastem da frente. As “fake news” têm sido a coluna vertebral do discurso populista. Em Portugal, o populismo tem vindo a sair da casca com pezinhos de lã. A fraca expressão de movimentos populistas de direita até à data terá ainda a ver com o trauma de 48 anos de ditadura em Portugal até se dar O 25 de abril de 1974. Em Portugal, diga-se a verdade, os ataques terroristas e os problemas com a imigração não têm tido expressão. Mas agora Ventura Chegou, que apesar de ser um político com assento parlamentar, tenta não parecer. E assim vai navegando com distinta ousadia nas águas turvas da perceção popular da corrupção política.
Vivemos uma onda de grande descrédito em relação ao papel dos políticos em democracia. E tal facto deve-se à sucessão de escândalos financeiros envolvendo pessoas públicas de fraca confiabilidade no exercício de funções em que a ética é fundamental. E Ventura cavalgou essa onda, que tem afastado os jovens do interesse pela participação cívica e assumirem lugares de responsabilidade política. É assim plausível que através do populismo, pontas de lança da extrema direita como Ventura tenham algum sucesso em arrebanhá-los. Jovens de diferentes estratos sociais dão expressivas evidências de rejeição do ofício de “político profissional”. As camadas mais jovens da população sempre tenderam a engajar-se mais empenhadamente em causas sociais protagonizadas por organizações não governamentais do que em instituições políticas. Um dos maiores entraves à participação dos jovens em instituições clássicas, como os partidos políticos, prende-se com esse estigma que os faz andar pelas ruas da amargura. Moral da história: Os clássicos partidos, considerados ainda “mainstream”, das duas uma: ou reveem rapidamente o paradigma da militância marcado pelos obsoletos meios da propaganda que se espelham em frases de escárnio tais como "ah! são os coladores de cartazes e as tardes de churrasco de carne assada”; ou desaparecem comidos pelos novos partidos populistas. Será que a via de melhorar todo este estado de coisas pouco recomendáveis passa pela reabilitação da social-democracia e do socialismo democrático? Não sei.
Como não sei, em vez de fazer como David Hume, que foi jogar uma partida de gamão quando não conseguiu resolver o problema de Deus, vou derivar para o tema da perceção, recuperando aqui alguns conceitos de outro filósofo que, em vez de jogar às damas, dedicou muito do seu tempo às teorias da perceção em filosofia – Maurice Merleau-Ponty: "A perceção é um feito nosso, tal como é o pensamento. A perceção aberta sobre a própria coisa, ela é o que pensamos ver – cogitatum ou noema. A perceção é uma fé percetiva baseada num pulsar de manhã à noite, numa mistura com o mundo entre o cogito e o cogitatum."
É nessa relação corpo-mente-mundo que repousa a nossa perceção reflexiva – a abertura para o mundo que nos escapa, no momento em que o esforço reflexivo tenta captá-la. Portanto, o fenomenólogo Merleau-Ponty, tem consciência de que suspende a visão bruta para a transpor na ordem da expressão linguística. É sobre esta relação que repousa a rede de significações que nos faz acreditar na nossa vinculação ao mundo. Ora, é pelo pensamento que entramos no mundo pelo qual o objeto se apresenta na perceção. É o pensamento que faz a síntese entre a fé percetiva e o mundo percebido. É a reflexão, não no sentido do espelho, mas no sentido do entrelaçamento.
Husserl, antes de Merleau-Ponty, tinha colocado nitidamente a nu o papel da redução transcendental para que a nossa reflexão eidética fosse possível. Isto é, a palavra "refletir" é enganadora, porque não se trata de refletir na mente a representação do fluxo da experiência vivida, como se a mente fosse um espelho. Isto não significa dizer que não existe um mundo preexistente à consciência do mundo. O mundo consciencializa a sua existência em que Cada um de nós é um mero mediador do próprio mundo que consciencializa a sua existência. Ou seja, a redução fenomenológica husserliana é a colocação do espectador, que somos nós, temporariamente em suspensão. O mundo é-em-si-o-que-é, independentemente da nossa perceção. O mundo é uno e único, sempre o mesmo, independentemente das perceções individuais em que as coisas e o mundo se limitam a ser objeto do nosso pensamento, como se fossem meros fantasmas. E isso não quer dizer que a ordem da significação não seja naturalmente a ordem do verdadeiro. Porque não temos outra fonte da verdade. Mas a ordem do verdadeiro não é a ordem do acontecimento em si. A questão de saber se o mundo é mesmo assim, e único, para todos os sujeitos perde todo o sentido quanto à identidade do mundo. Perguntar se o meu mundo e o de outrem constituem o mesmo, quer numérica, quer especificamente, nada mais quer dizer, porquanto, como estrutura inteligível, o mundo está sempre além do pensamento como acontecimento.
A certeza de que temos duas mãos, quando as colocamos à frente dos olhos, é mais uma questão de fé percetiva do que de razões para acreditar nisso. No caso da perceção, a certeza vem antes da razão. Só faz sentido fazer entrar em cena a razão para averiguar do fenómeno da ilusão e da alucinação. A fé percetiva sempre foi resistente à dúvida. A apreensão de mim, por mim, estende-se ao longo de toda a minha vida, salvo a Alzheimer. A interrogação filosófica sobre o mundo não pode consistir em contestar o mundo em si, ou as coisas em si, por subordinação ao fenómeno da ordem humana. Há, todavia, questões de facto, quanto às coligações sensoriais da nossa condição psicofísica, que nos possibilitam uma relação de verdade com os objetos do mundo.
Quando perguntamos o que é isto e aquilo, ou o mundo, não é possível colocarmo-nos na situação como se fôssemos puros espectadores vindos de nenhures, ou de Marte. Somos um campo de experiências onde se desenrolam acontecimentos concretos e não abstratos. A carne faz parte do visível concreto e a fala faz parte das significações abstratas e indivisíveis da carne. É pela linguagem que percebemos como é necessário voltar à relação da carne com as próprias coisas. É muito claro por que muitas vezes, para tornar presente a própria coisa, não temos outro remédio senão recorrermos à metáfora. Por outro lado, não saberíamos o que é o falso e o verdadeiro se não tivéssemos condições para os distinguir. Da mesma maneira que não teríamos como distinguir o sonho da realidade. Mas conseguimos distinguir nitidamente quando tivemos um sonho depois de termos acordado. Há diferença de estrutura e, por assim dizer, de definição ou nitidez entre a perceção do mundo real e o sonho.
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