quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Auto-engano, irracionalidade ou wishful thinking


Há quem pense que seja uma irracionalidade Trump dizer que ganhou as eleições, porque não tem razões para acreditar nisso. São conclusões injustificáveis para os dados que ainda temos a poucas horas do encerramento das urnas, e quando ainda faltam contar muitos votos.

Auto-engano não deve ser, porque auto-engano é a situação em que escondemos de nós próprios as razões que nos levam a não poder acreditar. E também não tem nada a ver com akrasia, porque akrasia é preguiça ou fraqueza de vontade para não fazer o esforço de não acreditar que se ganhou.

Há alguma diferença entre raciocínio prático e raciocínio teórico no que respeita a este tipo de irracionalidade. Se não disponho de evidência que me permita saber se quem ganhou as eleições foi Biden ou Trump, é irracional decidir arbitrariamente acreditar que foi Biden quem ganhou. Numa aposta de casino, escolher à sorte, não tem nada de irracional. Mas já é irracional escolher acreditar à sorte. De forma algo análoga, wishful thinking pode ter bons efeitos práticos, mas não teóricos. Por exemplo, é wishful thinking acreditar que se tiver o acaso de me infetar com o vírus SARS-CoV-2 me vou safar, sem precisar inclusivamente de ser internado no hospital. Mas já não tem bom efeito prático querer acreditar antes de fazer o teste que vai dar negativo.

Aristóteles teve muito a dizer acerca da racionalidade, nomeadamente enquanto fundador da Lógica, teorizador da natureza da ação, da natureza da ética, e daquilo que se entende por ‘ciência’. O que faz uma coisa ser aquilo que é? O que faz o homem ser aquilo que é, que o distingue de outro animal qualquer? Aristóteles postulou que era a racionalidade. E ao determinar a forma como pensamentos devem seguir-se de outros pensamentos, inventou a Lógica como ‘ciência’.

Trump ter desejos de ganhar é perfeitamente aceitável. E isso já é outra coisa, porque sendo um desejo legítimo, as implicações que daí decorrem já têm a ver com outra área da ação, que é a ética. E a ética remete para a razão prática se quisermos seguir a opinião de Kant, ou seja, precisamente a razão para as nossas ações. Mas poderemos qualificar os nossos desejos de racionais ou irracionais, quando sabemos que eles nos chegam, assaltam ou invadem? Se formos consultar Kant, dá-nos um certo tipo de resposta. Mas se formos consultar Hume, dá-nos uma resposta contrária.

David Hume defendeu que a razão só por si, não nos move a fazer coisa alguma. Sem desejos, a razão não nos leva a lado nenhum. Apenas paixões ou desejos nos movem. Para Hume, não podemos sequer afirmar que uma pessoa perversa é pura e simplesmente irracional. O que podemos dizer é que essa pessoa é movida pelas paixões erradas, que se movem na esfera dos sentimentos. Os nossos juízos acerca disso são juízos morais.

Kant defendeu uma teoria acerca da estrutura da motivação para a ação totalmente oposta à de Hume. Ou seja, defendeu uma teoria racionalista da motivação para a ação. Kant diz que a razão é livre e está em condições de moldar a força de vontade de modo a corrigir os desejos. Ser livre de desejos e inclinações é segundo Kant o desejo universal de todo o ser racional, já que desejos e inclinações são um peso, uma escravidão, um afastamento relativamente à verdadeira natureza humana.

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