quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Prometeu roubou o fogo do Olimpo



O debate ético em relação à manipulação genética da vida praticamente não existe. Deve ser a sociedade a emanar providências éticas cautelares sobre a ciência genética e não as forças que administram o dinheiro e o tempo. A dinâmica da ciência deve ser regulada de certo modo pela dinâmica da própria sociedade. No caso das modernas sociedades ocidentais tem imperado a lógica mercadológica em todos os aspetos da vida, não apenas ao nível social, mas também individual. E isso é mau, porque captura a ciência não para o interesse geral, mas para interesses particulares. É importante sublinhar tal aspeto para que não percamos de vista o entendimento de que a neutralidade da ciência em relação à política e à economia é uma quimera, pois por mais que benefícios possam mais tarde ou mais cedo chegar a todos, a melhoria da vida humana não é o único motor da pesquisa científica. 

E assim vamos temendo pela morte e pela desumanização, ou mesmo a inexistência de uma humanidade futura devido à radicalidade exponencial da imprevisibilidade da fantástica tecnologia, cujas transformações da natureza aumenta a probabilidade de riscos e danos irreversíveis. Portanto, a questão que se coloca é quais os limites que podem ser impostos às inovações técnicas que incidem sobre o corpo humano, e como se pode decidir acerca do futuro da humanidade. 

Prometeu roubou o fogo do Olimpo para o entregar aos homens e ensinar-lhes como usá-lo. Por isso, Prometeu foi condenado e acorrentado a uma rocha por toda a vida eterna, onde todos os dias uma águia, enviada por Zeus lhe vem comer o fígado. Mas no dia seguinte lá está outra vez o fígado reposto para ser de novo comido pela águia. Zeus, ao privar os homens do fogo, tinha como fito privar-lhes a existência. Em bom rigor o que Prometeu quis dar aos homens foi o raciocínio, e com ele ter acesso à técnica. Assim, deixariam de precisar dos deuses. Esta é a metáfora – o domínio da natureza por parte do homem visando o bem e a emancipação da espécie humana, apostando no poder libertador do conhecimento científico – serviu às mil maravilhas o ideal iluminista, que se prolongou pelo positivismo e pelo socialismo utópico. 

Se eu digo que já estou velho, vem logo alguém acudir para me tirar essa ideia da cabeça. Nas ricas sociedades modernas as pessoas tendem a afastar-se das conversas acerca da morte. Hoje não faltam entusiastas da ciência e da tecnologia que promete num futuro breve ser capaz de deter ou mesmo reverter o envelhecimento. Basta ao indivíduo manter-se saudável com os recursos disponíveis hoje para poder usufruir desse futuro. Ora, os fenómenos do envelhecimento e da longevidade não podem ser compreendidos simplesmente por uma abordagem biológica e cientificista, ou pelos seus aspetos sociais e económicos. O envelhecimento é uma coisa programada pela natureza. Mas hoje há quem a encare o fenómeno como se de uma doença se tratasse. Para ludibriar a ética, para ser possível manipular o relógio do tempo de vida de cada ser humano, o envelhecimento é uma doença. Então há que ir em busca de uma cura para ela. E isso impulsiona a aplicação de recursos cada vez maiores para pesquisas que se proponham encontrar uma cura para a velhice. Em maio de 2013 dois pesquisadores da Universidade de Harvard - Amy Wagers e Richard T. Lee - anunciaram a descoberta de uma proteína, a GDF11, capaz de reverter o processo de envelhecimento no coração. De acordo com os especialistas, essa é uma descoberta gigantesca, pois mudará o modo como pensamos os processos de envelhecimento. Os esforços dos médicos de laboratório concentram-se agora em viabilizar testes clínicos da GDF11, para que o tratamento possa chegar a quem o pedir. 

A busca por uma longa vida e eterna juventude está cheia de casos ao longo da história da humanidade. Diz-se que Cleópatra tomava banho de leite de cabra para manter a pele sempre jovem, o mito da eterna juventude. Os alquimistas buscavam a pedra filosofal e o elixir da longa vida. Nos dias atuais a busca por uma vida mais longa permite-se devido não apenas ao desenvolvimento tecnocientífico cada vez com mais capacidade para manipular o corpo humano a nível molecular e genético, mas também devido à chamada cibernética e o avatar ciborgue. Ciborgue é um conceito saído da ciência cibernética que junta um organismo biológico a uma aparelhagem tecnológica. Em poucas palavras, um ciborgue seria um ser humano melhorado: mais forte, mais inteligente, mas cheio de próteses. Produto do pensamento utilitarista, aplicado sem limites ao osso e ao aço, o ciborgue anuncia a imagem de um super-homem através de recursos tecnológicos. Capaz de superar cada vez mais as limitações de desempenho ditadas pela sua condição biológica natural. 

Na Grécia Antiga, buscava-se a perfeição simétrica das formas físicas. E isso refletia-se no cuidado que os gregos tinham com o corpo. É com Hipócrates que surge a primeira tentativa de abordar a doença sob uma perspetiva mais holista, não apenas do corpo, mas também da mente. Assim, a doença passa a ser concebida como um fenómeno natural resultante do desequilíbrio entre os quatro humores que regem o corpo: o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra. Essa doutrina aperfeiçoada mais tarde por Galeno de Pérgamo, e em parceria com os filósofos aristotélicos, constituiu dogma por toda a Idade Média, quando o corpo era tido como um instrumento de expiação. 

A conceção cristã de que o homem é dotado de uma alma imortal e que a sua vida na Terra é apenas uma passagem para a eternidade, foi uma maneira ardilosa para aceitarmos com tranquilidade a ideia de mortalidade. Só que naquele tempo ninguém estava à espera dos desvarios da ciência. A incapacidade da ciência nos salvar, de nos lavar a alma, de nos dar um sentido para a nossa vida, num mundo injusto e cruel, é uma das grandes limitações da ciência. Seja como for, a experiência da morte é variável de sociedade para sociedade, a maneira como os indivíduos lidam com a morte é aprendida de acordo com o ambiente social. 

O cristão deveria reprimir os seus impulsos físicos pela busca da vida eterna. Com o advento da modernidade e o surgimento dos ideais humanistas e da noção de indivíduo, diversas abordagens foram-se sucedendo, de modo que no início do século XIX o corpo era visto como uma simples manifestação da natureza sobre o qual a cultura atuava. Deste modo, o estudo do corpo foi relegado às ciências naturais, e o estudo do espírito foi deixado aos humanistas que no início do século XX com Freud era o Eu, a identidade individual, o meio pelo qual o indivíduo se afirmava como ser único. No final do século XX e início do século XXI a biotecnologia tornou-se a ciência de maior impacto económico no mundo. Finalmente, o genoma e a consequente descoberta do funcionamento do organismo a nível molecular, veio permitir atuar no corpo humano de uma forma nunca vista.

Um dos mais respeitados e conceituados nomes no campo da tecnologia é o inventor americano Ray Kurzweil. Para Kurzweil a inteligência humana é a força mais poderosa do universo e, graças a ela, em poucos anos a inteligência artificial chegará ao mesmo patamar da inteligência humana. Com isso, prevê que com o avanço exponencial da tecnologia “vamos transcender as nossas limitações biológicas” e em última instância a ciência será capaz de num futuro muito próximo proporcionar ao homem a imortalidade. Acredita ainda, que a ciência será capaz de restituir a vida àqueles que já partiram, seja por meio da hibridização do corpo humano com a máquina, seja pela transferência do cérebro do indivíduo para uma realidade virtual. Atribui ainda à nanotecnologia a capacidade de levar o homem a transcender os limites biológicos para manter a juventude e a saúde.

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