quarta-feira, 25 de novembro de 2020

No que é humano, há tanto de instintivo como de racional



Homo sum ; humani nihil a me alienum puto
(Sou um Homem, nada do que é humano me é estranho) 
[Públio Terêncio Afro]

Esta frase de Terêncio, escravo liberto que se tornou dramaturgo no tempo do Império Romano, exprime o processo de formação da consciência social e política tanto a nível individual como coletivo. 
O ser humano nunca existiu em estado de natureza pura, ou seja, pré-social. A ideia de que a humanidade começou por ser cada um por si, isolado, a interagir com os outros através da violência anárquica, como teorizou Hobbes, está errada. Rousseau também está errado com a ideia do bom selvagem a interagir pacificamente com outro bom selvagem. O ser humano, tal como os seus antepassados primatas, viveu sempre em grupo social de tamanho variável, assente no parentesco. Na verdade, em bandos sociais num período de tempo suficientemente longo para que as capacidades cognitivas e emocionais necessárias à promoção da cooperação social tivessem evoluído e ficado enraizadas na sua configuração genética. Isto significa que o modelo de cooperação é instintivo, ainda que seja temperado com cálculo racional.

Assim, a sociabilidade humana forma-se em torno de dois princípios: o do parentesco; e o do altruísmo recíproco. O princípio do parentesco sustenta que os seres humanos atuam naturalmente de modo altruísta para com os seus parentes genéticos, ou supostamente genéticos. O princípio do altruísmo recíproco vai ao encontro da interpretação de que à medida que os seres humanos vão convivendo em conjunto tendem a desenvolver não apenas relações de benefício, a regra, como por vezes de prejuízo mútuo, a exceção. A norma é o altruísmo recíproco ser gerado por relações de confiança. Porém, poderão aderir a outras formas mais impessoais, as chamadas instituições, se para tal houver incentivos. Mas quando as instituições impessoais entram em declínio, são sempre as formas de cooperação primária que voltam a emergir, porque elas são as que estão mais estruturalmente consolidadas por natureza. Ao longo do tempo, e em todo o lado, surgiram períodos de regresso ao princípio patrimonial natural, como por exemplo na China, na parte final da dinastia Han, em que os cargos burocráticos foram preenchidos pelas famílias dos governantes; na Turquia, quando os janízaros estenderam aos seus filhos a entrada nas suas fileiras; ou na França do Antigo Regime, quando os lugares para os cargos da administração eram transmitidos por via hereditária.  

É sabido que o instinto humano para o cumprimento de regras é suportado pelas emoções, e não pela razão. Emoções como a culpa, a vergonha, o orgulho, a raiva, o embaraço e a admiração não são comportamentos aprendidos por via da educação. Em vez disso, organizam-se espontaneamente logo à nascença, e à medida que se vai crescendo. É algo parecido com a língua falada, a língua nativa. Ainda que o conteúdo das regras seja convencional, e o vocabulário varie de sociedade para sociedade, a estrutura profunda das regras e a capacidade de as adquirir são naturais. A propensão dos seres humanos para obedecerem a regras é intrínseca à sua natureza. O que ajuda a compreender por que o conservadorismo se enraíza nas sociedades. As regras precisam de ser mudadas, à medida que as condições de vida evoluem, ou de ser alteradas para melhor se adaptarem a um conjunto específico de condições ambientais. Mas as sociedades são mais lentas a processar as mudanças devido à força desse enraizamento à tradição. Permanecem agarradas à tradição apesar de ter perdido a sua razão de ser por irrelevante ou inútil, e até disfuncional.

Por muito que custe aos adeptos de Rousseau, que defendem que no fundo no fundo o ser humano é todo bonzinho, a violência é uma característica intrínseca ao ser humano. Desde os primeiros primatas até ao homo sapiens sapiens dos dias de hoje, a violência de uns contra os outros esteve sempre presente em qualquer lugar. Ao contrário do que sugeria Rousseau, a propensão para a violência não foi um comportamento adquirido, ou que tenha emergido apenas num dado momento da história humana. Encarado como um defeito de fabrico, ou não, se teve que ser para a espécie não se extinguir, sempre tiveram de ser criadas instituições sociais para controlar e canalizar a violência. Na verdade, uma das preocupações principais de qualquer governo, é de cuidar das instituições indispensáveis para a manutenção e controlo da ordem pública, bem como à permissão de atividades de catarse que agregam as pessoas à prática da violência pela via lúdica. Em diversos aspetos, as normas e instituições do mundo contemporâneo vieram pôr cobro à violência enquanto meio de resolver os impasses políticos. Ninguém espera, ou pretende, que os países da África Subsariana atravessem o mesmo tipo de processos seculares experimentados pela China ou pela Europa, de forma a gerar Estados fortes e consolidados. Isto significa, ou que o fardo da inovação e reforma institucional recairá sobre outros mecanismos não-violentos semelhantes aos que descrevi acima, ou que as sociedades continuarão a atravessar o declínio político. 

Mas encarando as coisas como elas são, nem tudo é mau, os seres humanos, por natureza, desejam não só recursos materiais, mas também reconhecimento. O reconhecimento é a perceção do valor ou dignidade de outro ser humano, ou daquilo que é entendido de outra forma como estatuto. As lutas pelo reconhecimento ou pelo estatuto têm frequentemente uma característica distinta das lutas pelos recursos, uma vez que o estatuto é relativo, e não absoluto. Só se pode ter um estatuto elevado caso todos os outros o reconheçam e aceitem estar mais abaixo. As lutas em torno do estatuto relativo são de soma nula e, nelas, os ganhos de um protagonista são as perdas de outro. Nos séculos V e VI as tribos árabes conseguiram resolver as suas divergências e conquistar grande parte do Norte de África e do Médio Oriente porque procuraram o reconhecimento da sua religião. O islão impôs-se de forma muito semelhante ao cristianismo quando os guerreiros europeus conquistaram o Novo Mundo sob o lema da evangelização. Foi o que se passou em tempos mais recentes com a democracia. Será difícil de compreender a ascensão da democracia moderna em todo o mundo se não for enquadrada na exigência do reconhecimento do seu estatuto. 

A Inglaterra passou gradualmente por essa exigência de reconhecimento. E os Estados Unidos da América chegaram a cair no erro de querer impor a democracia em certas partes do globo onde há milénios haviam florescido grandes civilizações. E se não iam a bem iam a mal, inclusivamente invadindo os seus territórios. A capacidade das sociedades para inovar a nível institucional depende de conseguirem neutralizar os interesses políticos instalados que detêm o poder de veto sobre as reformas. Por vezes a transformação económica enfraquece a posição das elites existentes em favor de novas elites, que se batem por novas instituições. O relativo declínio dos rendimentos da propriedade fundiária, quando comparados com os do comércio ou da manufatura em Inglaterra, reforçou a burguesia e permitiu-lhe obter ganhos políticos à custa da velha aristocracia no século XVII. Por vezes, novos atores sociais são reforçados pela ascensão de novas ideologias religiosas. Não é completamente claro se as sociedades democráticas conseguem sempre resolver este tipo de problemas pacificamente. Nos Estados Unidos, durante o período que conduziu à Guerra Civil, uma minoria de norte-americanos no Sul procurou apaixonadamente defender a sua «peculiar instituição» da escravatura. As regras institucionais existentes, segundo a Constituição, permitiam-lhes fazê-lo, desde que a expansão do país rumo ao Oeste não conduzisse à admissão de estados livres suficientes para ultrapassar o seu veto. O conflito acabou por ser impossível de resolver segundo a Constituição e necessitou de uma guerra que tirou a vida a mais de 600 000 norte-americanos. 

É importante resistir à tentação de reduzir a motivação humana a um desejo económico de recursos. A violência ao longo da história humana foi frequentemente empregue por pessoas que buscavam não riqueza material, mas reconhecimento. Os conflitos prosseguem muito para além do ponto em que têm sentido a nível económico. É impossível desenvolver uma teoria sólida do desenvolvimento político sem considerar as ideias como causas fundamentais pelas quais as sociedades se diferenciam e seguem caminhos de desenvolvimento distintos. As pessoas criam modelos mentais da realidade em todas as sociedades humanas. Estes modelos mentais atribuem causalidade a diversos fatores – muitas vezes invisíveis – e a sua função é tornar o mundo mais legível, previsível e fácil de manipular. 

Nas sociedades primitivas, essas forças invisíveis eram espíritos, demónios, deuses ou a natureza. Todas as crenças religiosas constituem um modelo mental da realidade, no qual os acontecimentos observáveis são atribuídos a, ou provocados, por forças inobserváveis ou difíceis de identificar. Os modelos mentais e as regras estão intimamente relacionadas, uma vez que os modelos sugerem frequentemente regras claras que as sociedades devem seguir. As religiões são mais do que meras teorias; são códigos mentais prescritivos que procuram aplicar regras aos seus seguidores. A universalidade da crença religiosa em praticamente todas as sociedades humanas conhecidas sugere que ela está de algum modo enraizada na natureza humana. Tal como a linguagem e a obediência às regras, o conteúdo das crenças religiosas varia de sociedade para sociedade. Mas, sendo a capacidade de criar doutrinas religiosas inata, não significa que tenha de haver um gene da religião. 

Os modelos mentais partilhados, como é o caso das religiões, são decisivos na facilitação da ação coletiva em grande escala. A ação coletiva baseada apenas no interesse próprio racional é completamente inadequada para explicar o grau de altruísmo e de cooperação social efetivamente existente no mundo. As crenças religiosas ajudaram a motivar as pessoas para coisas que não desejariam fazer se estivessem interessadas apenas em recursos ou no bem-estar material. A partilha de crenças e de cultura favorece a cooperação, pois oferece objetivos comuns e facilita a cooperação para a solução de problemas partilhados.

É assim verdade que a religião, num contexto histórico mais amplo, foi um fator decisivo que permitiu uma cooperação social mais ampla, capaz de transcender o parentesco e a amizade enquanto fonte de relações sociais. No entanto, não podemos ignorar as guerras religiosas do passado, e ainda o conflito religioso no mundo contemporâneo protagonizado por um setor radical cada vez mais significativo de uma certa religião hostil, não apenas para com outras religiões, mas também com superior hostilidade e intolerância contra ateus e agnósticos da cultura europeia laica. Tendo sido esta marcada pela ideologia secular marxista-leninista, se bem que com um tipo de influência de cariz semelhante a uma religião. A substituição de crenças religiosas por ideologias, teve o mesmo e diversos efeitos nas sociedades contemporâneas, igualmente destrutivas pela forma inflamada como as convicções se transmitiram.
Pensadores como Karl Marx e Émile Durkheim, compreendendo o papel utilitário desempenhado pelas crenças religiosas na unificação das comunidades (quer se trate do conjunto da comunidade quer se trate de uma classe social específica), pensaram que a religião havia sido por isso criada deliberadamente com esse objetivo. A religião nunca pode ser explicada simplesmente através da referência às suas condições materiais prévias. Os pressupostos metafísicos específicos subjacentes a essa religião são altamente complexos e sofisticados, e é um erro tremendo procurar relacioná-los detalhadamente com as condições económicas e ambientais específicas.

A passagem de sociedades estruturadas em bando e em tribo para sociedades com Estado representou, de certa forma, um enorme recuo para a liberdade humana. Os Estados eram mais ricos e mais poderosos do que os seus antecessores baseados no parentesco, mas essa riqueza e poder conduziu a uma enorme estratificação: de um lado, senhores; e do outro, escravos. Hegel afirmaria que o reconhecimento concedido a um governante numa sociedade tão desigual era incompleto e em última medida insatisfatório para os próprios governantes, por provir de pessoas a quem faltava dignidade. A ascensão da democracia moderna concede a todas as pessoas a oportunidade de se governarem a si próprias, na base do reconhecimento mútuo da dignidade e dos direitos dos seus congéneres humanos. Procura assim restaurar, no contexto de sociedades amplas e complexas parte daquilo que se perdeu na transição original para o Estado. A competição é decisiva para o processo de desenvolvimento político, tal como acontece na evolução biológica. Se não houvesse competição, não existiria uma pressão seletiva sobre as instituições e não existiriam incentivos à inovação institucional, nem à sua partilha ou à sua reforma. Entre as mais importantes pressões competitivas que conduziram à inovação institucional encontram-se a violência e a guerra. A transição da organização em bando para a organização em tribo tornou-se possível em virtude de uma maior produtividade económica, mas foi diretamente motivada pela superior capacidade de mobilizar mão de obra revelada pelas sociedades tribais.

As verdadeiras raízes históricas de diferentes instituições parecem frequentemente ter sido o produto de uma longa combinação de acidentes históricos que seria impossível prever. A ideia pode parecer desencorajadora, uma vez que não se pode esperar que uma sociedade contemporânea adotasse exatamente a mesma sequência de acontecimentos até chegar a instituições semelhantes. A fonte histórica específica de uma instituição é menos importante do que a sua funcionalidade. Uma vez descoberta, pode ser imitada e utilizada por outras sociedades de formas completamente impossíveis de antecipar. As instituições desenvolvidas são mais complexas por estarem sujeitas a uma maior divisão do trabalho e especialização. Numa chefatura ou num Estado primitivo, o governante pode ser simultaneamente um general militar, um líder sacerdotal, um cobrador de impostos e o Supremo Tribunal de Justiça. Num Estado altamente desenvolvido, todas estas funções são desempenhadas por organizações distintas, com funções específicas e um elevado grau de capacidade técnica para as desempenhar.

A autonomia está intimamente relacionada com a especialização, razão pela qual tende a caracterizar as instituições mais desenvolvidas. Um exército autorizado a controlar as suas próprias promoções internas tenderá a desempenhar melhor as suas funções, caso todas as outras condições permaneçam iguais, do que um exército no qual os generais são nomeados segundo critérios políticos. Se existe um processo dinâmico através do qual a competição entre instituições gera o desenvolvimento político, existe também um processo correspondente de declínio político, através do qual as sociedades se tornam menos institucionalizadas. As instituições são criadas inicialmente para fazer face aos desafios competitivos de um determinado meio ambiente. Esse ambiente pode ser: físico - consistindo em terras, recursos, clima e geografia; ou social - envolvendo rivais, inimigos, competidores, aliados e outros semelhantes. Noutras alturas, é a mera força da liderança e a capacidade de formar coligações vencedoras entre os grupos excluídos do poder que conduzem às transformações. É esta, na verdade, a essência da política: a capacidade dos líderes de concretizar os seus objetivos através da combinação de autoridade, legitimidade, intimidação, negociação, carisma, ideias e organização.

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