terça-feira, 10 de novembro de 2020

O sátiro. E a relação do humor com a política




Segundo a terminologia atualmente em uso nos países de língua inglesa, um infotainer é um entertainer televisivo, geralmente um humorista, que cruza a sátira política com a informação jornalística. Em Portugal é o caso de Ricardo Araújo Pereira no seu programa de entretenimento mais recente, no canal da SIC, intitulado: Isto é Gozar com quem trabalha. É um programa que tem duas partes, em que na segunda parte é entrevistada uma figura política, geralmente a exercer um cargo governamental, ou um líder partidário. É, portanto, um programa de infoentretenimento (em português), com um ambiente menos sério que um genuíno programa informativo, mas não deixando de transmitir informação, só que é com humor. E a sátira é o género humorístico mais utilizado.

A sátira política já tem uma história muito antiga, os meios e a forma é que são diferentes. O infotainment é que é um termo relativamente novo, mas vasto no panorama dos media da atualidade associados à televisão. A sátira, através de ironia e humor é uma representação divertida do mundo em que se está a viver. Essencialmente a sátira divide-se em duas grandes vertentes, a social e a política.

No que diz respeito à vertente social, o alvo da crítica são as situações do quotidiano da sociedade, que tendo na Idade Média sido representada pelo bobo da corte, atingiu o seu apogeu e importância no Renascimento. E foi nesse ambiente que surgiu em Portugal, no ano de 1516, por mãos de Gil Vicente, poeta e dramaturgo, a obra Auto da Barca do Inferno, uma crítica à sociedade usando personagens extraídos do quotidiano social português da altura.

O humor, algo que é difícil de definir, e quem se meter nisso, como outros já tentaram fazer, meter-se-á em controvérsias. Mas há uma coisa que se pode dizer: o humorista existe para fazer rir. E, por analogia, direi que o riso é o ingrediente principal, ou a essência da sátira. Se as pessoas que assistem ao programa não rirem nos-momentos-chave, e é rir mesmo e não apenas sorrir, o sátiro fica a saber que a sua mensagem não passou. Já a ironia é a representação do contrário. Esta funciona como que uma lupa que amplia ao pormenor o sentido do que é enunciado, usando a contradição, onde através da afirmação é capaz de negar, e onde através da negação consegue afirmar. Ao fazer isto, a ironia acaba por nos afastar um pouco do discurso lógico, visto o seu discurso só ter sentido interpretativo numa aplicação contextual. Esta funciona através do que está subentendido, e não do que é lógico. Poderá até chegar ao paradoxo, embora quase impercetível, mas mudando toda a coesão argumentativa. E ao provocar perplexidade nos espectadores, é ela que funciona como gatilho para a gargalhada.

A sátira teve a sua origem na literatura grega, com as clássicas peças de teatro, e, na romana, com o festival saturnália - festival em honra do deus Neptuno. No entanto, estes dois epicentros de sátira detêm características divergentes no que diz respeito ao âmbito político e, também, quanto ao seu formato. O teatro de comédia grega era um evento público que interagia com a audiência através do riso, ao mesmo tempo permitia a criação de uma sensação de pertença à comunidade. Em contraste, a sátira romana era escrita para as elites e, consequentemente, usufruída como uma experiência individual e privada. A comédia grega, tal como a tragédia, foi marcada por uma noção didática em detrimento da estética, que só foi desenvolvida posteriormente, com o surgimento da crítica sofista, como é exemplificado nas peças de Aristófanes. A grande diferença da época medieval para a época renascentista foi a descoberta da função social da sátira. Essa função social assentava na exposição e revelação de temáticas que costumavam ficar à margem de qualquer contemplação crítica. 

Contadores de histórias medievais na Europa Ocidental frequentemente confundiam sátiros com homens selvagens. Sátiros e homens selvagens foram concebidos com uma parte humanos e uma parte animal. Ambos considerados possuidores de apetites sexuais desenfreados. Histórias de homens selvagens durante a Idade Média frequentemente tinham um tom erótico, e eram contadas principalmente oralmente por camponeses, já que o clero as desaprovava oficialmente. Nesta forma, os sátiros às vezes são descritos e representados em bestiários medievais. Um sátiro mostrado vestido com uma pele de animal, carregando uma clava e uma serpente. Em outros casos, os sátiros são mostrados nus, com falos aumentados para enfatizar a sua natureza sexual.


Durante a Renascença, nenhuma distinção foi feita entre sátiros e faunos e ambos geralmente recebiam características humanas e de cabra em qualquer proporção que o artista considerasse apropriada. Um sátiro com pernas de cabra aparece na base da estátua de Baco de Miguel Ângelo (1497). Sátiros da Renascença aparecem por vezes embriagados como os da antiguidade. Mas também aparecem em cenas familiares. Essa tendência de sátiros domésticos e mais familiares pode ter resultado de um conflito com homens selvagens, que, especialmente nas representações da Renascença na Alemanha, eram frequentemente retratados como vivendo uma vida relativamente pacífica com as suas famílias. 


A representação mais famosa de um sátiro doméstico é a gravura de 1505 de Albrecht Dürer -The Satyr's Family, que foi amplamente reproduzida e imitada. Este retrato popular de sátiros e homens selvagens também pode ter ajudado a dar origem ao conceito europeu posterior de nobre selvagem. Os sátiros ocupavam um espaço paradoxal e liminar na arte renascentista, não apenas porque eram em parte humanos e em parte bestas, mas também porque eram antigos e naturais. Eles eram de origem clássica, mas tinham um cânone iconográfico muito diferente das representações padrão de deuses e heróis. Sátiros passaram a ser vistos como "pré-humanos", incorporando todos os traços de selvageria e barbárie associados aos animais, mas em corpos semelhantes aos humanos. 

Durante o século XIX, os sátiros e ninfas passaram a funcionar frequentemente como um meio de representar a sexualidade sem ofender as sensibilidades morais vitorianas. No romance "The Marble Faun" (1860) do autor americano Nathaniel Hawthorne, o conde italiano Donatello é descrito como tendo uma notável semelhança com uma das estátuas de sátiro de mármore de Praxiteles. Como os sátiros da lenda grega, Donatello tem uma natureza despreocupada. A sua associação com sátiros é ainda mais cimentada por sua intensa atração sexual pela mulher americana Miriam. 


Sátiros e ninfas forneciam um pretexto clássico que permitia que representações sexuais deles fossem vistos como objetos de arte erudita, em vez de mera pornografia. O imperador
Napoleão III concedeu ao pintor Alexandre Cabanel a Legião de Honra, em parte por causa de sua pintura Ninfa Raptada por um Fauno. 



E em 1873, outro académico francês - William-Adolphe Bouguereau pintou "Ninfas e Sátiro", que retrata quatro ninfas nuas dançando em torno de "um sátiro incomumente submisso", levando-o gentilmente para a água de um riacho próximo. Esta pintura foi comprada no mesmo ano por um americano chamado John Wolfe, que a exibiu publicamente num local proeminente no bar da Hoffman House, um hotel de sua propriedade na Madison Square e na Brodway. Apesar do seu picante, muitas mulheres foram ao bar para ver a pintura. A pintura logo foi reproduzida em massa em azulejos de cerâmica, placas de porcelana e outros itens de luxo nos Estados Unidos.

Em 1876, Stéphane Mallarmé escreve "A Tarde de um Fauno", um poema narrativo em primeira pessoa sobre um fauno que tenta beijar duas belas ninfas enquanto dormem juntos. Ele acidentalmente os acorda. Assustados, eles se transformam em pássaros de água branca e voam para longe, deixando o fauno tocar a sua flauta sozinho. Claude Debussy compôs Prélude à l'après-midi d'un faune, que foi executado pela primeira vez em 1894.



No século XX as obras de George Orwell, nomeadamente, Animal Farm, empregam a linguagem satírica direcionada para uma dimensão muito mais política, bem como concentrada na preocupação vincada em alertar para eventuais perigos políticos e sociais futuros, em detrimento de uma tentativa de diligenciar um efeito moralista. Esse objetivo futurista, utilizando certas valências do presente, é uma das principais características do género distópico. 



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