Ora, para combater a pandemia são necessárias estruturas ainda mais complexas, que começam nos cuidados intensivos e acabam numa vacina. Para além de consumir avultados recursos materiais e humanos, impede que a economia corresponda na resposta ao mesmo nível das necessidades. E então, para além da perda de vidas humanas, junta-se o problema da perda económica. Chegado a este ponto, as pessoas sofrem não apenas devido a uma sobrecarga de complexidade, mas também do stress psicológico. É a clássica dificuldade de adaptação a situações novas e extremas, que limitam a capacidade de resposta. Por isso, não nos admiremos que os sistemas de saúde de praticamente todos os países do mundo estejam a colapsar mais do que seria de esperar. E tanto mais se os serviços já estavam em défice antes de a pandemia ter chegado.
Toda esta complicação, que colocou os serviços de saúde praticamente exclusivamente concentrados no combate à covid-19, vai implicar que só muito mais tarde se vão recomeçar a tratar os casos que ficaram para trás, mas num nível muito mais baixo de exigência. Pode-se argumentar, naturalmente, que os avanços tecnológicos e as inovações científicas permitem superar as dificuldades. Por quanto tempo ainda? Ninguém sabe ao certo. A complexidade desta pandemia atingiu tais níveis ao ponto de não ter deixado incólume nenhum primeiro-ministro nem nenhum/a ministra/o da saúde. A perda de controlo por parte do líder é comum acontecer, e normalmente dá lugar a estruturas descentralizadas com o poder mais distribuído. Mas nem assim a situação deixa de ser mais precária. Uma falha numa das partes reverbera por toda a rede.
O regresso a uma forma de vida mais simplificada, isto é, reduzida apenas ao estritamente necessário a uma vida de subsistência, não é uma ideia capaz de cativar muita gente. O estilo de vida a que chegamos atingiu um ponto sem retorno pela via voluntária. E a coerção em democracia é impensável. Geralmente conhecemos alguma psicologia acerca do comportamento a título individual, mas falhamos muito em relação ao conjunto das propriedades sistémicas que resultam das interações entre as pessoas.
Um dos problemas nesta pandemia foi o sistema de saúde já estar depauperado em recursos humanos, o que colocou à prova a resiliência e a eficiência do sistema. Desta forma verificou-se que o sistema não estava à altura de responder a uma pressão desta natureza.
O "normal pós-covid-19", cuja pandemia ainda deve estar longe de desaparecer, enquadra-se naquele tipo de acontecimentos a que John Casti alude no seu livro de 2012 – X-Events: The Collapse of Eveything. Doravante teremos de rever a nossa forma de encarar o chamado estado de vida normal. É na ameaça ao nosso modo de vida moderno que o SARS-CoV-2 protagoniza um acontecimento-X. Definir uma probabilidade credível para a ocorrência de um acontecimento raro pura e simplesmente não é possível. Quando o normal já não era assim tão normal eis uma pandemia com um vírus novo cujas características implicaram estratégias nunca-antes experimentadas. Que eu saiba não houve nenhum governo no mundo que tenha previsto a pandemia, e mais do que isso, tomado alguma medida por antecipação de modo a controlar o acontecimento.
Os seres humanos estão hoje mais vulneráveis do que nunca a acontecimentos-X. As infraestruturas complexas das quais dependemos para a vida de todos os dias – os transportes, as comunicações, as redes de abastecimento de água e energia elétrica, os cuidados de saúde, só para referir alguns – são de uma fragilidade inacreditável, como nos é lembrado quando a mais pequena falha afeta o sistema de abastecimento. Quais são as causas desta fragilidade e da nossa consequente vulnerabilidade? Poderemos compreender estes acontecimentos-X e antecipar a sua chegada? Para responder a tais perguntas, precisamos de compreender pelo menos um pouco a(s) causa(s) que originam esses acontecimentos e saber ainda se essas causas estão inseridas no funcionamento das próprias infraestruturas ou se são alguma coisa que possamos prever e, até certo ponto, controlar.
A causa subjacente às catástrofes relacionadas com acontecimentos-X tem mais ligações com a complexidade crescente da nossa sociedade global, do que propriamente com os eventos genuinamente atribuídos à natureza. Por vezes a complexidade revela-se em camadas de burocracias sobrepostas que bloqueiam o sistema por elas próprias criado. O sistema deixa de funcionar por “sobrecarga de complexidade”, nos termos de John Casti. Outras vezes o problema da complexidade manifesta-se, não na infraestrutura, mas nas ligações entre várias infraestruturas que interagem por sistema. Outras vezes ainda é a incapacidade de entendimento por parte dos cidadãos da linguagem utilizada pelos seus governantes. Mas, em todos os casos, os sistemas com que contamos para a vida de todos os dias não podem funcionar se estiverem para lá da capacidade de compreensão de quem os controla. Quando o nível de complexidade ou o desequilíbrio se tornam superiores ao que o sistema pode suportar, é necessária uma redução de complexidade para retificar a situação. Um acontecimento-X é simplesmente a maneira que um sistema tem de restaurar um equilíbrio sustentável. É este processo de reequilíbrio que deve estar sempre presente nas nossas mentes. O que é verdadeiramente preocupante é que os sistemas em que se baseia o nosso estilo de vida do século XXI pura e simplesmente não são tão robustos como gostaríamos que fossem.
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