sexta-feira, 27 de novembro de 2020

A malvada complexidade




A interação de um vírus com o corpo humano, para o qual ele não tem imunidade, é um capricho da natureza. No tempo em que os seres humanos eram caçadores recolectores as consequências seriam mínimas. Mas no estado de complexidade a que chegaram as sociedades humanas, as consequências de uma pandemia como esta são brutais. Epidemias como esta são fenómenos raros, mas extremos, que quando acontecem desafiam a sobrevivência de vastas camadas de população que vive aglomerada. A dimensão do impacto e a sua gravidade está mais relacionada com o gau da complexidade em que as pessoas vivem, do que com o vírus em si. É claro que uma pandemia não é nada que se compare com a queda de um asteroide, que pode levar à extinção de muitas espécies vivas, incluindo a nossa. A queda de um meteorito de certas dimensões, vindo do nada, pode causar de forma mais ou menos instantânea estragos equivalentes aos da explosão de cem mil bombas atómicas de Nagasaki. Uma pandemia é um acontecimento que, para além de um número significativo de mortos, ainda leva algum tempo até causar destruição. Uma praga mundial não pode infetar todas as pessoas em poucas horas. Até mesmo a doença mais contagiosa requer um processo de transmissão que leva muitas semanas a dar a volta ao planeta – apesar do nosso mundo de viagens globais estar muito acelerado.

Ora, para combater a pandemia são necessárias estruturas ainda mais complexas, que começam nos cuidados intensivos e acabam numa vacina. Para além de consumir avultados recursos materiais e humanos, impede que a economia corresponda na resposta ao mesmo nível das necessidades. E então, para além da perda de vidas humanas, junta-se o problema da perda económica. Chegado a este ponto, as pessoas sofrem não apenas devido a uma sobrecarga de complexidade, mas também do stress psicológico. É a clássica dificuldade de adaptação a situações novas e extremas, que limitam a capacidade de resposta. Por isso, não nos admiremos que os sistemas de saúde de praticamente todos os países do mundo estejam a colapsar mais do que seria de esperar. E tanto mais se os serviços já estavam em défice antes de a pandemia ter chegado.

Toda esta complicação, que colocou os serviços de saúde praticamente exclusivamente concentrados no combate à covid-19, vai implicar que só muito mais tarde se vão recomeçar a tratar os casos que ficaram para trás, mas num nível muito mais baixo de exigência. Pode-se argumentar, naturalmente, que os avanços tecnológicos e as inovações científicas permitem superar as dificuldades. Por quanto tempo ainda? Ninguém sabe ao certo. A complexidade desta pandemia atingiu tais níveis ao ponto de não ter deixado incólume nenhum primeiro-ministro nem nenhum/a ministra/o da saúde. A perda de controlo por parte do líder é comum acontecer, e normalmente dá lugar a estruturas descentralizadas com o poder mais distribuído. Mas nem assim a situação deixa de ser mais precária. Uma falha numa das partes reverbera por toda a rede.

O regresso a uma forma de vida mais simplificada, isto é, reduzida apenas ao estritamente necessário a uma vida de subsistência, não é uma ideia capaz de cativar muita gente. O estilo de vida a que chegamos atingiu um ponto sem retorno pela via voluntária. E a coerção em democracia é impensável. Geralmente conhecemos alguma psicologia acerca do comportamento a título individual, mas falhamos muito em relação ao conjunto das propriedades sistémicas que resultam das interações entre as pessoas.
Um dos problemas nesta pandemia foi o sistema de saúde já estar depauperado em recursos humanos, o que colocou à prova a resiliência e a eficiência do sistema. Desta forma verificou-se que o sistema não estava à altura de responder a uma pressão desta natureza.

O "normal pós-covid-19", cuja pandemia ainda deve estar longe de desaparecer, enquadra-se naquele tipo de acontecimentos a que John Casti alude no seu livro de 2012 – X-Events: The Collapse of Eveything. Doravante teremos de rever a nossa forma de encarar o chamado estado de vida normal. É na ameaça ao nosso modo de vida moderno que o SARS-CoV-2 protagoniza um acontecimento-X. Definir uma probabilidade credível para a ocorrência de um acontecimento raro pura e simplesmente não é possível. Quando o normal já não era assim tão normal eis uma pandemia com um vírus novo cujas características implicaram estratégias nunca-antes experimentadas. Que eu saiba não houve nenhum governo no mundo que tenha previsto a pandemia, e mais do que isso, tomado alguma medida por antecipação de modo a controlar o acontecimento.

Os seres humanos estão hoje mais vulneráveis do que nunca a acontecimentos-X. As infraestruturas complexas das quais dependemos para a vida de todos os dias – os transportes, as comunicações, as redes de abastecimento de água e energia elétrica, os cuidados de saúde, só para referir alguns – são de uma fragilidade inacreditável, como nos é lembrado quando a mais pequena falha afeta o sistema de abastecimento. Quais são as causas desta fragilidade e da nossa consequente vulnerabilidade? Poderemos compreender estes acontecimentos-X e antecipar a sua chegada? Para responder a tais perguntas, precisamos de compreender pelo menos um pouco a(s) causa(s) que originam esses acontecimentos e saber ainda se essas causas estão inseridas no funcionamento das próprias infraestruturas ou se são alguma coisa que possamos prever e, até certo ponto, controlar.

A causa subjacente às catástrofes relacionadas com acontecimentos-X tem mais ligações com a complexidade crescente da nossa sociedade global, do que propriamente com os eventos genuinamente atribuídos à natureza. Por vezes a complexidade revela-se em camadas de burocracias sobrepostas que bloqueiam o sistema por elas próprias criado. O sistema deixa de funcionar por “sobrecarga de complexidade”, nos termos de John Casti. Outras vezes o problema da complexidade manifesta-se, não na infraestrutura, mas nas ligações entre várias infraestruturas que interagem por sistema. Outras vezes ainda é a incapacidade de entendimento por parte dos cidadãos da linguagem utilizada pelos seus governantes. Mas, em todos os casos, os sistemas com que contamos para a vida de todos os dias não podem funcionar se estiverem para lá da capacidade de compreensão de quem os controla. Quando o nível de complexidade ou o desequilíbrio se tornam superiores ao que o sistema pode suportar, é necessária uma redução de complexidade para retificar a situação. Um acontecimento-X é simplesmente a maneira que um sistema tem de restaurar um equilíbrio sustentável. É este processo de reequilíbrio que deve estar sempre presente nas nossas mentes. 
O que é verdadeiramente preocupante é que os sistemas em que se baseia o nosso estilo de vida do século XXI pura e simplesmente não são tão robustos como gostaríamos que fossem. 

Sem comentários:

Enviar um comentário