segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Jihadismo não é sinónimo de nacionalismo islâmico


O nacionalismo islâmico é essencialmente defensivo. Ao passo que o jihadismo tem como alcance uma nova conquista do mundo. Uma visão belicista, que pede o martírio, ou seja, o bombista suicida como epígono da seita não árabe dos Assassinos, seita xiita fundada por Hassan ibn al-Sabbah em 1090, combatendo tudo e todos, desde os cruzados aos turcos. 

Na era contemporânea estes mártires assassinos primeiro são xiitas voluntários, que detêm o avanço das divisões blindadas iraquianas na guerra Irão – Iraque. Surge em seguida no Líbano, mas de forma mais individualizada, sob a forma dos veículos suicidas utilizados contra os interesses ocidentais ou na luta contra a ocupação israelita. Fazendo émulos em partidos laicos, o Hezbollah, que é xiita, no entanto, renuncia ao mártir suicida depois de se ter tornado a única força de resistência, sem abandonar o simbolismo do sangue vertido, e o totem do istichhadi. E há o Hamas, apesar de derivado dos Irmãos Muçulmanos, portanto sunita, mantém as melhores relações com o Hezbollah libanês. Agora são sunitas, os que com arma branca tentam fazer o maior número de mortos possível. Mas foi nos meios xiitas que os demandantes de martírio se manifestaram primeiro. 

O mártire islâmico ao matar-se matando, é um “morre-se” abstrato, coextensivo à vida, feito de uma multiplicidade de mortes parciais e singulares. O mártire islâmico é na atualidade uma singularidade que mimetiza o kamikaze do passado, em que a morte é pré-concebida em potência para o martírio. São homens e mulheres, mais homens do que mulheres infelizes devido à sua raiva, ou à sua indeterminada loucura. 

Mas o terrorista desta última vaga é um terrorista infame, porque com a faca já não se torna num mártire lendário. São estas vidas infames que nos despertam vontade de saber porque perderam o estatuto de herói lendário? O bombista transforma-se instantaneamente de um ente insignificante num ser com sentido obtido pela morte. E é o sentido pela raridade, que dá significado a um ente que desaparece da luz instantaneamente. É pelo desaparecimento na pulverização dos explosivos de alta potência, rodeados à cintura, que o ente se torna visível no Ser. Esta visibilidade, em terminologia kantiana, deixou de fazer parte do domínio do fenómeno, para passar a fazer parte do domínio do númeno. E esta passagem faz com que estes seres martirológicos sejam verdadeiramente ontológicos. Esta é uma forma invertida da escatologia cristã, da carne dobrada na encarnação. O bombista suicida ao desencarnar-se atinge uma outra dimensão do Ser, que é o Nada. São estas aparentes contradições das aporias Kantianas que Hegel tentou resolver, assim como os seus continuadores Schopenhauer e Nietzsche. 

Bem, é do fenómeno alucinatório que se passa para a transformação ontológica. E não há outra forma de abordar este problema sem o tratar como loucura. O que é a loucura? Boa pergunta. Quem terá chegado perto da resposta foi Nietzsche. Mas teve de o pagar com loucura pessoal. Nietzsche acabou os seus dias como louco. Nietzsche começou por substituir a premissa “vontade de saber” por “vontade de poder”. E foi nesta transformação que Nietzsche “explodiu”, porque esperou a sua própria possibilidade no limite da dobragem do seu ser. Era uma proposição em que a dobra do ser só podia fazer-se pela via do terceiro excluído, uma coisa que desde Aristóteles se considerava uma impossibilidade. Houvesse força para isso, para poder dobrar-se de tal modo sobre si que tornasse o excluído coextensivo com o incluído. E isto só viria a tornar-se possível, alguns anos mais tarde, com a descoberta da mecânica quântica, e com a experiência dos kamikazes japoneses, e das duas bombas atómicas despejadas sobre o Japão.

Passando agora mais propriamente para tópico do nacionalismo islâmico, o jihadista não teria razões para se envergonhar da história passada do Mundo Árabe. Os filósofos árabes não se limitaram a apropriar-se da filosofia grega e romana antiga. Postularam a universalidade da razão. Lendo o livro de Amin Maalouf – As Cruzadas vistas pelos Árabes – é então com as invasões de cruzados e mongóis, e os escravos pretorianos mamelucos que aceleram a decadência da civilização islâmica. Por um lado, as golpadas palacianas na época dos mamelucos circassianos, ditos burjitas, até são contraditórias com o seu contributo cultural, nomeadamente essa arquitetura barroca e o tempo de Ibn Khaldun. Mas também foi de intolerância religiosa, essencialmente dirigida contra o xiismo. Por outro lado, vieram os turcos Otomanos, que não tinham nada a ver com os árabes, conquistando Constantinopla e herdando a cultura do Império Bizantino.

Rebeldes e homens de poder, filósofos e grandes sufis, pregadores inspirados ou passadistas, todas as variedades do espírito coexistem ou sucedem-se através desta longa história em que se entrecruzam e se entrechocam sombras tão diversas, e por vezes tão antagónicas, como o racionalismo aristotélico de Averróis e a teologia Ghazâlî, a sociologia avant la lettre de Ibn Khaldun e o literalismo corânico de Ibn Taymiya.

Face à Europa do Renascimento, a potência islâmica faz mais do que boa figura com o Império Otomano, que se impôs aos seus rivais, tanto muçulmanos árabes, como judeus e cristãos. Foi durante dois séculos uma superpotência. Ora, foi este pendor otomano, que disputava taco a taco com os europeus a supremacia geopolítica no mundo mediterrânico, que veio a dar na Nahda, que significa “Despertar” ou “Renascimento”. Também conhecido por Renascimento Árabe ou Iluminismo, ocorreu nas regiões de língua árabe do Império Otomano – Egito, Líbano e Síria. Inicialmente foi mais uma transformação singular, numa óptica protonacionalista, mas que depois se explicitou como anti turca. Nahda não foi um fenómeno sem consequências, porque marca um momento histórico de aspiração nacionalista árabe, que a Primeira Guerra Mundial veio interromper. O Império Otomano desapareceu, mas apesar de os franceses e britânicos terem ficado a administrar os países do Levante, isso não retirou ao Levante o estatuto de zona franca da cultura árabe. Mesmo a derrota árabe em 1967, na Guerra dos Seis Dias com Israel, não pôs termo à efervescência cultural do pensamento contestatário então dominante no mundo. Tanto pelo seu conteúdo como pelos seus modos de expressão, a Nahda é filha do Iluminismo e da ideia de progresso dos europeus.

A ideia patriótica deteta-se em filigrana no tempo de Mohammad Ali [1769-1849], quediva (vice-rei) do Egito de 1805 a 1848, em nome do sultão, governador do Império Otomano. Considerado como o fundador do Egito moderno, introduziu grandes reformas no país entre elas, a construção de canais de irrigação para melhor distribuição das águas do Rio Nilo, construção de prédios, instituição de novas leis, impostos, etc. e a modernização do exército. Conseguiu considerável autonomia frente ao Império Otomano e também ampliou consideravelmente as suas fronteiras. Depois seu filho, Ibrahim Paxá, assistido pelo famoso Solimão Paxá, veterano do Grande Exército, o general de origem albanesa, conquista a Síria e administra-a durante cerca de dez anos com toda a “arabidade”. E em 1817 derrota as forças sauditas. Na mesma época, Rifâ’ al-Tahtâwi dá à palavra watan (pátria) o seu significado moderno. Nenhuma incompatibilidade, portanto, entre a modernidade e a tradição árabe. Três décadas mais tarde, Boutros al-Bustâni, o outro grande pioneiro da Nahda – a qual, entretanto, chegou a Beirute –, retoma a temática de Rifâ’ al-Tahtâwi para expressar um patriotismo árabe-sírio que não vai, de qualquer modo, ao ponto de rejeitar a cidadania otomana.

A teleologia nacionalista tem, contudo, os seus limites. Apesar dos impasses da modernidade árabe, a palavra Nahdawi – homem de renascimento – conserva ainda hoje um valor positivo, próximo do significado do humanismo na Europa. Os manifestos de Bustâni [1819-1883] e de Chidyâq, em prol da condição feminina, surgem meio século depois das primeiras teses feministas na Europa. Chidyâq é autor do neologismo ichtirâkiyya para traduzir a palavra “socialismo”, uma força política que começava a emergir na Europa. Assim se proclama a adesão ao progresso científico e tudo aquilo que tem a ver com o racionalismo e a luta contra as superstições. É o que se passa em Beirute, por exemplo, com a associação muçulmana dos Maqâssed, e da elite que não hesita em escolarizar os seus filhos nas escolas dos missionários e jesuítas. Mohammad ‘Abduh, que se tornará mufti do Egito, põe em prática um racionalismo que tem o alcance de um aggiornamento do islão. Com outros protagonistas da Nahda interessa-se pela franco-maçonaria francesa, dado o seu caráter racionalista. Apesar de a Nahda ter ficado com um sabor a fracasso depois da queda otomana às mãos proveitosas das potências imperiais europeias depois da Primeira Grande Guerra, o espírito da Nahda em prol da independência árabe continuará a inspirar as lutas pela emancipação contra a indiferença das potências europeias. 

É evidente que as estruturas económica e política, paralisadas pelas relações de força internas e mundiais, desempenham um papel de bloqueio determinante. Também não se devem descurar os entraves sociais, mas sem inferir daí uma impossibilidade antropológica. Durante o século XIX e a maior parte do século XX, a produção cultural concentrou-se no Maxerreque, entre os vales do Nilo e do Eufrates. É um termo árabe que significa Levante, e designa a parte oriental do Mundo Árabe, em contraponto com o Magrebe, a parte ocidental. É um conceito geográfico e cultural. Fazem parte do Maxerreque todos os países árabes situados a leste da Líbia, um território tradicionalmente considerado como território de transição, embora modernamente a Líbia se inclua dentro do Magrebe, e seja membro da União do Magrebe Árabe. 


No cinema a primazia cabe então ao Cairo, com Beirute em concorrência. Os violinos e os violoncelos tornam-se os instrumentos de base da nova música árabe, enquanto não chega a guitarra elétrica que, no início dos anos 70 do século XX, também Umm Kulthum [1898-1975] se fez acompanhar. De nascimento: Fatima Ibrahim as-Sayyid al-Biltaji, foi uma cantora, compositora e atriz egípcia. Conhecida como a Estrela do Oriente ou Estrela do Este (kawkab el-sharq), mais de três décadas após a sua morte, ainda é reconhecida como uma das cantoras mais famosas e ilustres da história da música árabe do século XX. Umm Kulthum também atuou esporadicamente no cinema. De todas as artes, é incontestavelmente o cinema que melhor ilustra a inscrição dos árabes na modernidade. Após os primórdios, nos anos 1920, o arranque do cinema egípcio deve-se a um punhado de italianos a viver no Cairo. O musical virá a ser um dos seus motores. Em 1935 é criado o Estúdio Misr, sob os auspícios do banqueiro Talaat Harb. A seguir a Hollywood e Bombaim, mas antes da Cinecittà, o Cairo chegou ao terceiro lugar da cinematografia mundial.

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