terça-feira, 3 de novembro de 2020

A loucura no poder




À medida que prega placas de contraplacado para proteger as montras, um comerciante em Washington vai desabafando com o repórter dizendo que são uns vândalos, por isso mais vale prevenir. Além disso, diz com ironia, o contraplacado é mais barato do que o vidro. Todos temem o pior: manifestações de grupos pró-Trump e pró-Biden, sejam quais forem os resultados. O que é alarmante é que este tipo de preparativos nunca foi acionado, tamanho é o receio.


Setenta e cinco por cento dos americanos teme violência generalizada após as presidenciais de hoje nos Estados Unidos da América, que se podem começar a desunir. Mesmo assim, a maior cadeia de supermercados dos EUA continua a vender armas. A porta-voz da Walmart, Kory Lundberg, anunciou que, do lado da empresa, nada mudará. “Não prevemos alterar a nossa política de venda de armas.”


Tomemos um exemplo muito sumário: é fácil ver que o Presidente, de que agora não me quero lembrar do nome, é um louco. Mas não é tão fácil metê-lo num asilo, porque depois o problema era mantê-lo lá. É fácil topar um louco, mas demonstrar em que é que nos baseamos para dizer que se trata de loucura já é o cabo dos trabalhos. Quem teria autoridade para defender o diagnóstico de loucura seria um psiquiatra. Mas o problema é que nas sebentas da Psiquiatria não encontramos as palavras: loucura ou louco. Em suma, há pessoas internadas no asilo que não deviam estar; e há pessoas que não estão e deviam lá estar. 

É claro que as palavras, que não são coisas, são demasiado vagas para apontar um louco. Quem não é louco? A loucura, ou insanidade, é, segundo a psicologia, uma condição humana que antes de ser psiquiatrizada requer chancela social. Algumas tradições sociais entendem que um sujeito louco pode não estar doente da mente, simplesmente pode ser uma maneira de a sociedade o julgar por ser diferente. Em jargão popular da minha terra, perante um sujeito esquisito diz-se: "Ah! esse fulano é um grande maluco. Mas tudo bem, é apenas um grande maluco, de resto até é um gajo porreiro". 

Na perspetiva da lei civil, a insanidade revoga obrigações legais e até atos cometidos contra a sociedade civil. Claro está, desde que o diagnóstico seja atestado previamente por um ou mais psicólogos, e um ou mais psiquiatras. E agora imaginem o sarilho em que nos metíamos, se o Presidente acabasse por ser considerado louco, e, por conseguinte, inimputável.

Cada época enuncia perfeitamente aquilo que há de mais cínico na sua política de saúde mental. É tudo uma questão de enunciado. Na época em que os diagnósticos só contavam como bons se fossem dados pela anatomia patológica, pela biópsia ou pela autópsia, a autópsia ao cérebro do louco vivo não se podia fazer. E não era raro haver surpresas quando se fazia a autópsia a um ex-louco morto, e se verificava que tinha um tumor ou um abcesso na cabeça. Esta era considerada a terceira dimensão de olhar o mal em profundidade. O mal não se reduz ao visível quando a sua qualidade é do domínio do sensível. Esta frase bem podia ter sido retirada da letra de uma canção qualquer, do Sérgio, do Veloso, ou assim.

Há alguns séculos atrás, alguns tolos, mas não loucos, deram-se mal com Espinosa [1632-1677], porque ele queria a liberdade. E, todavia, não acreditava na sua libertação. Em 27 de julho de 1656, na Sinagoga de Amesterdão de judeus apátridas de Portugal, Espinosa submeteu-se à humilhação do chérem, o equivalente hebraico da excomunhão católica. E a título póstumo, a Igreja Católica colocou toda a sua obra no Index Librorum Prohibitorum. Em bom rigor, na altura Espinosa já havia despertado disputa entre as duas correntes cismáticas do cristianismo europeu a ocidente: os católicos da Igreja Romana (o Papa Inocêncio X falecera em 1655); e os Calvinistas da Igreja Reformada Holandesa. O Papa Leão X [1475-1521] (que morreu em Roma, mas havia nascido em Florença, segundo filho de Clarice Orsini e Lourenço de Medici, o governante mais famoso da República Florentina. Seu primo, Giulio di Giuliano de Medici, viria a suceder-lhe como Papa Clemente VII), havia sido o último Papa Católico a monopolizar o cristianismo no Ocidente. Depois de Lutero [1483-1546] e Calvino [1509-1564], a Reforma Protestante estava bem sólida na Europa do Norte.

Há diferenças na forma como se fala da Natureza. Deus sive Natura, expressão criada por René Descartes, na Sexta Meditação, foi retomada por Espinosa no Tratado Teológico Político, em que identifica Deus com uma Natureza "necessária", num concito panteísta de Deus Necessidade. Outra coisa é a Natureza com conteúdo, de Newton. E, ainda, outra coisa é o mesmo conteúdo na expressão de um Goethe. Nuns, o conteúdo é visível; noutros, é apenas enunciável. Houve um tempo em que o conteúdo dos asilos não era produto dos médicos, mas dos polícias. A medicina enquanto forma de expressão psiquiátrica não produzia enunciados de desrazão. O papel dos asilos era vigiar e punir. E nessa altura a punição era disciplinar e não jurídica. 

Não se pergunta o que é o poder, e de onde vem, mas como é que o poder se exerce. E em cada exercício do poder há relações de forças. As sociedades disciplinares impõem categorias de poder para tarefas bem especificadas de controlo a determinado tipo de população. É o que se passa hoje com os Direitos Humanos. Xi Jinping não acredita nos Direitos Humanos. Trump também não. E quando não, não se sabe aquilo que pode um corpo humano quando se liberta da “ordem e disciplina”. Pode desatar a partir as montras de Nova Iorque e a saquear de pistola ou metralhadora na mão. Não se sabe aquilo que pode o homo sapiens enquanto ser vivo. Dizem que foi o sapiens que exterminou o neandertal. No entanto, neste caso, deve ter sido um vírus. 

Que poderes devemos confrontar, e quais são as nossas capacidades de resistência, hoje? As mutações do capitalismo na China não terão de enfrentar tão cedo, como se pode ver agora com a resposta à pandemia, um frente-a-frente inesperado com a América. Que sei eu? É a pergunta que devemos sempre fazer, quando lemos determinadas análises e constatamos que os intelectuais de pergaminhos, que desde 1968 se reivindicam da esquerda, não têm acertado uma, nos últimos tempos. Onde está a nova classe operária? Onde está o novo sindicalismo? Onde estão os novos engenheiros, não para combater as forças dos elementos naturais, mas para as respeitar? Os poderes da linguagem e do trabalho, forças obscuras que se entranham no corpo (uma força infinita e outra finita), impõem ao "indivíduo-sujeito" uma história que não é sua. 

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