terça-feira, 19 de janeiro de 2021

O choque é muito grande: 218 mortes hoje


O boletim de hoje anuncia mais 218 mortes por Covid-19, o maior número de mortes desde o início da pandemia. Por estes dias tenho recebido notícias de várias pessoas conhecidas que se finaram, umas de Covid-19, outras sem saber se sim ou se não. Outras ainda que foram internadas, umas já em casa pós alta hospitalar, outras ainda internadas por pneumonia. O choque foi muito grande, disse, mas o que a preocupa agora é a mãe, que ficou muito abalada. É preferível não festejar a liberdade, a ter que chorar a orfandade.

Acordo com a precisão de um galo, todos os dias às sete da manhã. Afasto os lençóis e rodo todo o corpo com as pernas levantadas para o lado direito, fincando o cotovelo e depois a mão espalmada no colchão, e sento-me na cama. Puxo para mim a cadeira de rodas e deslizo para ela à custa do braço esquerdo, tipo grua, num esforço isométrico.
A energia acumulada ao longo da noite tem de ser debitada em registo de Gasómetro de carboneto. Eu também nunca fui aficcionado de palmilhar cem quilómetros para me ir empanzinar com uma lampreiada ou um leitão assado. Se pensar bem, até se passa aqui uma reclusão de luxo, sem pulseira eletrónica, entre vagares de tartaruga e trinados de melros. O rumorejar da copa das árvores lá fora e os ruídos amortecidos da vida doméstica do andar de cima.

Afundo-me na poltrona, um livro aberto no colo, mas uma excitação fina desencaminha-me a concentração. O comportamento coletivo não é igual à soma dos comporatamentos individuais, diz este cientista social, estou a ler. O meu olhar foge para o écran onde correm os rodapés das notícias sem som: "Ventura arregimenta tropas para exército popular português ". Lamento . . .

Lamento profundamente a decepção que as próximas linhas vão causar nos corações sensíveis, nas mentes bem intencionadas, mas é forçoso que o diga. O pior da doença não é o hospital. Não são as dores nem são os médicos. Não são os tratamentos, nem é mesmo a comida requentada que chega ao colo do doente após uma longa viagem da cave. O pior são as visitas. Digo as visitas. As visitas têm que se lhes diga. A atitude e a consequente rejeição de visitas para alguns é encarado como uma violação dos Direitos Humanos. 

Não o fiz de propósito. Parece que perdi a ligação com o resto do mundo. E o que é mais grave, emocionalmente isso não me afeta nada. Depois de os levar à porta, esvaí-me. O que provocara aquilo chama-se noblesse oblige. Era dificil acreditar, mas eu estava mesmo assim, demasiado fraco para aguentar emoções. E por causa de quê? Por causa do: "O gajo está maluco - não quer ver ninguém". Por um lado o gajo queria estar em paz; passar o que tinha de passar no modo como o tinha de passar - sozinho, que ainda há vivências não delegáveis. "É pá, afinal o gajo esteve mesmo para bater a bota". E é como se tivéssemos de reatar tudo do zero, de um reset.

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