«. . . o bípede de polegar oponível nesse temível estado de dependente absoluto, . . .; e a mão hábil das invenções e do artesanato, essa mão da motricidade fina, capaz de colocar um fio de lã no mínimo buraco de uma agulha, . . . a mão que pede ajuda, a mão que dá ajuda. Tudo o resto talvez sejam ocupações eticamente intermédias dos ágeis dedos de um cidadão. No dia limite, no último instante, a tua mão será convocada: para salvar ou para pedir a salvação.» GONÇALO M. TAVARES
Eu sou ambidestro, mas podia ter sido esquerdino; para uns, canhoto, para outros, sinistro. O nosso Presidente é esquerdino; Paul McCartney idem; Jimi Hendrix aspas. Há teorias para tudo, e existe claramente uma correlação entre ser canhoto e ter um pendor para artista. Ou seja, ser criativo. Talvez porque os canhotos são obrigados desde novos a adaptar-se e a encontrar soluções num mundo desenhado ao contrário para eles, ou porque já pensam numa direção diferente da maioria. O que a Ciência diz sobre essa suposta vantagem não tem tanto a ver com a mão que é predominante, mas com a destreza inconsistente das duas mãos, o que leva a que experimentem mais e, em certos instrumentos como o piano, sejam obrigados a rever a sua coordenação motora, a aplicar elevados níveis de concentração, a adaptar-se a um ensino musical pensado para destros, o que aumenta a sua plasticidade cerebral. Pelos vistos pensam mais depressa, têm uma organização mental melhor, lutam melhor, têm melhor memória. Por exemplo, Mark Knopfler é canhoto, mas toca guitarra com a direita. Se calhar o estilo de fingerpicking do guitarrista dos Dire Straits é um reflexo do que venho expondo. Seja como for, o tempo de ensinar esquerdinos a serem destros já acabou, e existem imensos instrumentos para quem não toca direito.
Este artigo, que à partida parecia nada ter a ver com política, se calhar também tem a ver com política. Conceções essencialistas e tipológicas em humanos são hoje insustentáveis. Uma pessoa, um voto, uma pessoa, um cidadão, uma pessoa, uma identidade cívica. Numa sociedade democrática todos são iguais, e essa igualdade deriva da pessoa humana, do indivíduo, e só depois é que tudo o resto, todos os fatores de identidade contam: género, cor da pele, orientação sexual, religião. Para os procedimentos da democracia, devem ser invisíveis. Na verdade, a nossa tradição democrática assenta na condição de cidadão, e não deve ser subqualificada.
A democracia é uma escolha cultural e política, não parte de uma descrição sociológica nem antropológica da sociedade. O sistema de quotas, que está a crescer, assumidas na lei ou implicitamente funcionando como exclusão ou vantagem, torna, em nome da igualdade, as pessoas desiguais e perverte a cidadania. E não permite combater os males que estão por trás da desigualdade. Há qualquer coisa de errado quando, para combater o racismo, se estabelecem quotas que na maioria dos casos redunda no género e na cor da pele. E isto é que é, ao contrário do que o “politicamente correto” pensa, qualquer coisa de retrocesso civilizacional. O discurso cada vez mais hegemónico sobre o género, a preferência sexual, a cor da pele, a etnia ou a religião tem o resultado não resolver o problema de fundo: a pobreza, a exclusão, a desigualdade de oportunidades. Enquanto se viver numa sociedade desigual, ela tenderá a potenciar todos os fatores de exclusão. E esses fatores incluem o género, a orientação sexual, a cor da pele, a etnia e a religião. Se se quer combater o racismo e a discriminação, é na luta social que está a chave para combater as injustiças, e não nas boas intenções.
O uso do termo "raça" para significar algo como subespécie entre os seres humanos está errado; o homo sapiens sapiens não se subdivide em raças, como consta na declaração da UNESCO. Em ciência, o termo não se aplica a uma espécie tão geneticamente homogénea como um ser humano. Os estudos genéticos têm fundamentado a ausência de claras fronteiras biológicas. Assim sendo, o termo "raça" não é usado na terminologia científica, tanto em antropologia como em genética humana. O que no passado tinha sido definido como "raças" é agora definido como "grupos étnicos" ou "populações".
Depois da 2ª Guerra Mundial, as associações do conceito de raça com ideologias e teorias que se tinham desenvolvido desde os finais do século XIX, foram proscritas, dado que o uso da palavra "raça" passou a ser muito problemático. A palavra raça foi substituída por outras palavras que são menos ambíguas e emocionalmente menos carregadas, como populações, povos, grupos étnicos ou comunidades. Segundo Claude Lévi-Strauss, se os grupos humanos se distinguem, e se para tanto precisarem de ser distinguidos, então devem sê-lo unicamente em termos culturais. De facto, é unicamente pela cultura que os grupos humanos ou sociedades se distinguem e se diferenciam; e não segundo a sua natureza biológica. Quer dizer que, se é necessário a manutenção das distinções, o fenómeno não é de forma alguma natural. Não deriva da biologia, mas da antropologia cultural no sentido amplo. O racismo consiste precisamente no contrário, em fazer de um fenómeno cultural um fenómeno pretensamente físico, natural e biológico. Claude Lévi-Strauss explica ainda em Raça e História (que foi também publicado pela UNESCO) que a imensa diversidade cultural, correspondendo a modos de vida extraordinariamente diversificados, não é em nada imputável à biologia: ela se desenvolve paralelamente à diversidade biológica, seja da cor da pele, ou qualquer outro aspeto filogenético. Os etnólogos estimam que, postas de lado as supostas diferenças genéticas e fenotípicas, as populações humanas são principalmente diferenciadas pelos seus usos e costumes, que são transmitidos de geração em geração. A espécie humana caracteriza então pela sua grande diversidade cultural.
A diversidade cultural sobrepõe-se à biodiversidade. A diversidade cultural está para a espécie humana, assim como a biodiversidade está para as outras espécies, seja natural ou manipulada pela espécie humana. A diversidade humana fenotípica foi consequentemente absorvida pela cultura. E é importante distinguir bem os dois domínios para não recriar, mesmo involuntariamente, os discursos racistas e não científicos. Nessa ótica, as diferenças culturais aparecem como mais importantes.
O homo sapiens sapiens conheceu curtos períodos de isolamento que deu origem a diversos grupos étnicos. Mas o processo de globalização mais antigo processado pelas grandes migrações do passado, levou à mestiçagem que, apesar de tudo, acabou por ser mais nítida ao nível da cultua do que ao nível fenotípico. Por outro lado, até as culturas sociais isoladas, muito poucas sobreviveram isoladas tempo suficiente para gerar diferenças genéticas muito substanciais. Para que as características fenotípicas (anatómicas) se evidenciassem, seria necessário uma cultura manter-se isolada por mais tempo do que aquele que precedeu a época dos grandes fenómenos migratórios. Isto não significa que as forças da seleção natural não continuem a operar em populações humanas, só que essas forças precisam de muitos milhares de anos para que os seus resultados sejam visíveis. Existe a evidência de que determinadas regiões do genoma sofreram seleção direcional nos últimos 15 mil anos. Mas também há dados científicos para dizer que antes do início do Paleolítico Superior, há cerca de 50 mil anos, já existiam como expressão cultural universal, a língua falada, a música e o desenho.
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