segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Medos hipócritas são vulgaridades destes tempos covid

 



Há pessoas que continuam a dizer que têm medo de apanhar o vírus, o maldito vírus. Mas ao invés do que fizeram no primeiro confinamento, que se fecharam em casa porque o medo era mesmo genuíno, agora concedem sair de casa para ir beber um café ao postigo, sem máscara. E ainda reclamam por encontrarem outras pessoas em fila e sem máscara, para se habilitarem a tomar um café ao postigo.

Encontro-me no Hospital na fase de convalescença. Há quinze dias que não tomo um duche. Farto de me lavar à gato, lambuzando-me nas bacias do costume, deitei o barro à parede, como quem não quer a coisa. Mas a enfermeira veio logo dizer-me que era melhor não. Que ainda estava muito fraco, e com o vapor quente ainda podia desmaiar de hipotensão.

Não me apetece ver ninguém, não me perguntem porquê, mas as melhoras que as pessoas me enviam nada me dizem. Algo se passa de diferente. Houve um elo com o mundo que se quebrou com este ataque aéreo de um inimigo invisível chamado SARS-CoV-2. Telefonemas uns atrás dos outros. De tudo isto me salvou a enfermeira-chefe. É claro que houve amuos no meio do embargo, e delicados incidentes diplomáticos. Mas com isso podia eu bem.

Fora a minha voz ao telefone que assustara a minha mulher. Estava a meio do banho quando ela telefonou. O esforço de me lavar, pôs-me a língua de fora. Nada melhor do que o lavar de um gato. Um discurso entrecortado e arfante, um fio de voz, sumido, quase afónico, numa respiração estertorosa de moribundo. Parecia que me tinham dado uma facada nas corda vocais. A minha voz grave transformava-se num falsete ao fim de dois dedos de conversa. Falar arrasa-me, como se tivesse transportado pedregulhos. Comer um pão ou beber um chá era como subir dez andares pelas escadas. Ninguém imagina a quantidade de ar e de esforço muscular que se gasta para manter uma conversa.


Quando me dirigi ao lavatório do quarto para tentar fazer a barba, durante uns instantes fiquei parado a olhar para o espelho que me devolveu uma imagem que já não via há uma dúzia de dias. "Então este sou eu, aquele que andou lá e cá". Reconheço-me, mas sem espessura, sem profundidade no reconhecimento de um reflexo escorregadio de gelo fino. Estou mais magro, mais pálido, o pijama é largo demais, verde alface lixiviado. Paro, cansado, mirando a figura que arfa no espelho.

Dos dias que passei na Unidade de Cuidados Intensivos, recém expelido de um coma artificial, uma verdade posso arriscar, vivi submerso numa neblina de sono. Por isso compreender-se-á porque é que não respondo por mim. Muitos doentes não aguentam a pressão e desenvolvem psicoses. Pessoalmente tive sorte. Passei-me um pouco, mas foi explosão fugaz. Não afirmo, sequer, que foi um pesadelo. Não posso dizer que tenha apreciado. Mas posso testemunhar que foi a prova mais dura a que alguma vez fui submetido, e a experiência psicológica mais intensa e bizarra de toda a minha vida.
Posso confirmar que António Damásio tem razão quando afirma que a melhor designação para falar dos aspetos qualitativos da fenomenologia mental é: imagens mentais. E como ele diz, mais apropriadamente, imagens cinematográficas: trilhas sonoras; fotogramas em movimento. É a analogia mais próxima para ilustrar com similitude aquela atmosfera por onde vagueámos. Nada semelhante à realidade, mas algo parecido com as odisseias de ficção, numa estranheza de espaço sem tempo.


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