sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Mortes sem despedida


«16 de janeiro – Imagens dos hospitais. As doenças, e esta em particular, colocam o bípede de polegar oponível nesse temível estado de dependente absoluto, deitado e entubado, num ippon, sério e trágico, de horas infinitas, inteiramente caído sobre as costas ou sobre o peito. Somos, afinal, seres deitados; e a mão hábil das invenções e do artesanato, essa mão da motricidade fina, capaz de colocar um fio de lã no mínimo buraco de uma agulha, está agora inteira e compacta no gesto de pedir socorro ou, pelo menos, ajuda.
18 de janeiro – Volto à entrada de 16 de janeiro. Talvez a histórica evolução da mão humana tenha, afinal, dois destinos essenciais: a mão que pede ajuda, a mão que dá ajuda. Tudo o resto talvez sejam ocupações eticamente intermédias dos ágeis dedos de um cidadão. No dia limite, no último instante, a tua mão será convocada: para salvar ou para pedir a salvação. »
OS CADERNOS E OS DIAS
HISTÓRIA FRAGMENTADA DO MUNDO
POR GONÇALO M. TAVARES

Até 20 de janeiro de 2021 das 11.765 pessoas que morreram (todas as causas e todas as idades), 2.493 foi por causa da covid-19. No mesmo período do ano passado tinham morrido 7651 pessoas, menos 4.114 do que este ano. As últimas duas semanas bateram todos os recordes, com mais de 500 mortes por dia, algo que nunca aconteceu nos últimos 40 anos, desde que há registos de mortalidade diária no Instituto Nacional de Estatística. Portanto, dos 4.114 óbitos a mais, em relação ao ano anterior, só metade se deve à covid-19.

Os corpos permanecem, em alguns casos, entre quatro a seis dias no hospital, quando antes estavam prontos para as exéquias entre 24 a 48 horas. Deve-se ao atraso, por parte das funerárias, da recolha dos corpos que se vão amontoando nas morgues dos hospitais, à espera de serem retirados.

A covid-19 tem levado a ciência aos seus limites e, em alguns casos, traçou de forma acentuada as suas fronteiras. A primeira pandemia deste século encontra a Humanidade, com os seus centros de transporte e cadeias de abastecimento, mais vulnerável a um novo agente patogénico. Mas a virologia, a imunologia, a medicina dos cuidados intensivos e a epidemiologia, para citar algumas, têm progredido incomensuravelmente desde 1918. Infelizmente, numa emergência de saúde pública, a melhor ciência deve ser utilizada para informar as melhores políticas. No espírito sazonal da caridade, digamos que nem sempre foi esse o caso no nosso ano pandémico.

«No estudo da anamnese, percebeu-se que a criança já tinha tido muitos acidentes e quedas, e partido vários ossos. Adorava desportos radicais, como arborismo e escalada, e punha-se em situação de perigo. Os pais eram cuidadosos, mas um ano após o divórcio já estavam a coabitar com novos companheiros e os seus respetivos filhos. E a menina sentia-se a mais; sentia que, se morresse, não faria diferença. As quedas eram formas inconscientes de dizer: ‘Não tenho vontade de morrer, mas não me apetece viver.’»

A morte é um dos temas mais difíceis de tratar, dada a sua complexidade e a ambivalência dos nossos sentimentos acerca dela. Qualquer tipo de discurso sobre a morte é cheio de ambivalência, de fugas, de condicionamentos e de contradições.

O desaparecimento de um indivíduo neste mundo "implica" a sua entrada num outro. Daí que o ser humano tenha procurado nos mitos e na religião alguma resposta ou forma de explicar a morte e, se possível, o seu sentido, num confronto da razão com uma experiência-limite. Seja qual for a nossa origem sócio-geográfico-cultural, não podemos suportar a ideia de que, depois de morrer, não existe nada. Assim, como forma de luta contra o nada, a humanidade socorreu-se de mitologias, ritos e outros processos mágicos e pragmáticos para transfigurar e ocultar a mudança na natureza do corpo, evitando confrontar-se com a sua decomposição, destruição irreversível que lhe revela a sua finitude.

Platão defendia a ideia de que a morte era a passagem da alma para outra "vida"; talvez um sono sem sonhos, uma transição catártica ou libertação. A Igreja Católica assenta o seu poder na ideia da vida eterna e no temor do julgamento divino, Juízo Final que se abate sobre a alma quando ela abandona o corpo na hora da morte. O dilema da finitude humana sempre fez parte do âmbito religioso, pelo que as religiões chamaram para si a questão da Morte e do Além, procurando, de alguma forma, a ligação ao Transcendente. Segundo a ótica religiosa, morre-se no momento escolhido por Deus, detentor único do conhecimento dessa hora. Mas – questionemos – o suicida: morre na sua hora determinada? A morte é dada por si próprio e não por qualquer intervenção divina, crendo-se, até, que se atenta contra as suas determinações.

A eutanásia está no centro de um intenso debate público com diversas considerações de ordem religiosa, ética e prática. Estas considerações têm origem em diferentes perspetivas sobre o significado e valor da vida humana. Entre os argumentos a favor da prática da eutanásia estão a alegação de que as pessoas têm o direito a tomar decisões sobre o seu corpo e escolher como e quando querem morrer, que o direito à morte está implícito nos restantes Direitos Humanos, que a lei não deve interferir em assuntos da esfera privada que não prejudiquem outras pessoas, que a eutanásia continua a ser praticada mesmo que ilegal e que a morte não é necessariamente má. Entre os argumentos contra a prática de eutanásia estão a alegação que a eutanásia é contra a vontade de Deus, que não respeita a inviolabilidade da vida, que desvaloriza o valor da vida, de que a permissão da eutanásia voluntária levaria a casos de eutanásia involuntária e de que cuidados paliativos de qualidade retiram a necessidade de praticar eutanásia. Algumas pessoas alegam que, ainda que moralmente justificável, a eutanásia pode ser abusada para encobrir um homicídio.


Memento mori é uma expressão latina que significa algo como lembra-te de que és mortal. Platão no Fédon, onde a morte de Sócrates é recontada, introduz a ideia de que filosofar nada mais é do que pensar que somos mortais. Memento mori é também um conceito fundamental do estoicismo, que trata a morte como algo natural e certo que não deve ser temido, mas sim, elaborado. Os estoicos da antiguidade clássica eram particularmente conspícuos pelo uso desta disciplina. As cartas de Séneca estão repletas de injunções à meditação sobre a morte.

O caminho do samurai é, manhã após manhã, a prática da morte, considerando se estará aqui ou além, imaginando a mais levemente forma de morrer, e entregando a mente firmemente à morte. Ainda que isto possa ser uma coisa muito difícil, se alguém o fizer, pode ser feito.

A sabedoria estoica e o ceticismo desiludido desembocam no nada da morte. O estoicismo afirmou-se como uma propedêutica da morte. Defendendo que é necessário viver sem desejos que nos escravizem, traduz uma atitude de disponibilidade para a morte, aceitando-a. Assim, ela não nos privará de nada. A sabedoria estoica é, portanto, um exercício permanente de preparação para a morte. Desprezando-a ao desprezar a vida, cria-se um método de indiferença para com o acontecimento e o acaso. O estoico pratica esta indiferença e renúncia para não ser perturbado ou magoado pela possível e frequente carência dos bens terrenos e para não perder a serenidade, a paz, o sossego, que são o verdadeiro, supremo e único bem da alma. O estoicismo separa o espírito do corpo, para que a miséria deste e a sua putrefação não afetem aquele; esvazia a morte, para que, nessa desolação imensa, o espírito se eleve, o que constitui uma prática virtuosa.

Ao pedir ao indivíduo que se desprenda de tudo o que não depende da sua consciência, o estoicismo afirma a consciência individual como realidade suprema – nada acontece que não seja por ele desejado. Trata-se, pois, de um momento de afirmação do indivíduo, que se afirma duplamente: por um lado, como consciência soberana, senhora absoluta do corpo; por outro lado, como consciência lúcida que conhece o seu limite e a sua fraqueza. O indivíduo assume, portanto, por si mesmo, a função inevitável da morte: anula as paixões e os seus desejos. Assim, a virtude estoica é absolutamente negativa: quando o homem se torna indiferente a tudo e a tudo renuncia, não lhe resta, efetivamente, mais nada.

Já o epicurismo não permite nenhuma esperança de sobrevivência, nenhuma dúvida quanto ao aniquilamento da morte. Contra qualquer hipótese de uma "outra vida" após a morte, procura libertar o homem do temor de além-túmulo, que é fonte de tormentos que "adoecem" a alma, impedindo-a de alcançar o equilíbrio necessário a uma vida feliz. Tudo cessa com o fim da vida. Não tendo sentido o temor da morte, ela não constitui um problema. O epicurismo corrói o conceito de morte, até desfazê-lo. Desagrega-o – o nada da morte é reduzido a simples nada. 

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