quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

O perfil bailarino do tal homem


Alguns homens políticos de hoje são um tanto ou quanto bailarinos. E o perfil de um político bailarino é um perfil perverso e imoral. Mas não haja confusões. Começam por desejar apenas a glória e acabam ocupando o palco para fazer refulgir o seu eu. E como fazem? Bem, usam certas técnicas de combate para vencer os adversários. Uma espécie de caraté moral: "Quem é capaz de se mostrar mais honesto e corajoso, para denunciar os corruptos, do que eu?"

Anda por aí um tal, cujo nome não interessa, que chega a insinuar que é um eleito divino. E para isso maneja todos os recursos que lhe permitam colocar o outro numa situação moralmente inferior. Mas ser eleito pela divindade, vendo bem, é ser eleito sem mérito algum, porque é através de um veredicto sobrenatural, de uma vontade caprichosa. Enfim, uma paródia autojustificativa, com trivialidades das conversas de café. Baixezas inomináveis de mentes predestinadas para a idolatria.

Ora, a idolatria leva ao amor de um amado sem merecimento. E isso é perversamente justificado com aquela máxima maxista que ser-se amado sem mérito é justamente a prova de um amor verdadeiro, porque não incorpora nada de interesseiro.

É preciso ter cuidado quando se está em tempos de extremos. E não nos iludamos: um extremo não se consegue combater com outro extremo. Antes pelo contrário, os extremos alimentam-se mutuamente. É o que se passa com o clima, quanto mais as temperaturas altas atingem recordes no verão, ao mesmo tempo os dias frios de inverno se tornam mais frios. É uma lei, a simetria dos opostos, seja nas ciências duras, seja nas ciências moles.

Por falar em cousa mole, quando as democracias estão a ser minadas pelos extremos, o centro para salvar a democracia não pode ser mole ou branda. A democracia para ser saudável tem de acolher tanto as direitas como as esquerdas virtuosas. A democracia é um equilíbrio instável, já sabemos. Mas o que deita abaixo a democracia são os defeitos de ambos os lados que a minam por dentro. Por isso, quando a democracia está em perigo há que fazer correcções dos dois lados, correcções essas que só resultam se forem no sentido da moderação das utopias. E isso só se pode fazer com a convergência para o centro dos mais moderados.

Ai se . . .

Donaldo tivesse lido Heródoto como José terá lido, ainda que a primeira edição das 'Histórias' de Heródoto em russo só tenha aparecido nas livrarias da União Soviética em 1955, quando o ambiente se estava a tornar mais calmo, e as pessoas começavam a sentir alívio. Acabava também de sair 'Degelo' - o último romance de Ilia Ehremburg (Kiev 1891-1967 Moscovo), um dos autores mais produtivos e prolíficos da União Soviética. 

Quando o avião começou a descida para aterrar em Moscovo, ele estremeceu, agarrando-se ao assento e fechando os olhos. Era um homem de cara cinzenta, gasta, e prematuramente envelhecida, vestia um fato muito velho, que parecia estar pendurado num cabide. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Ele já não acreditava que ia voltar. Era dezembro de 1956, e as pessoas estavam a voltar, vindas dos gulags.

Heródoto, apesar de ser considerado o patrono dos historiadores de parceria com Tucídides, tinha a mesma mania dos segundos sentidos, tão típico dos escritores e jornalistas obcecados com a censura, com a espionagem e as perseguições. Por exemplo, abrimos na parte do Livro V e lemos que: 

". . . em Corinto, depois de trinta anos de governo sanguinário, morreu o tirano chamado Cípselos. Sucedeu-lhe o filho - Periandros, um ainda jovem e inexperiente na arte de ditador. De modo que decidiu aconselhar-se. Então enviou um mensageiro a Trasíbulos, o grande ditador de Mileto. Trasíbulos levou o arauto de Periandros para fora da cidade, e meteu-se com ele no interior de um campo cultivado. E à medida que ia fazendo perguntas ao arauto, ao mesmo tempo ia cortando as espigas que aos seus olhos ultrapassavam as demais em altura, e atirava-as para o chão. E assim, quando haviam percorrido todo o campo, as mais belas espigas jaziam espalhadas pelo chão. E de conselhos, nem uma  palavra tinha saído da boca de Trasíbulos. Isto feito, Trasíbulos disse ao arauto que podia ir embora. E ele foi. Quando regressou e chegou ao pé de Periandros, este estava morto por ouvir o seu mensageiro. Então o arauto, muito constrangido, limitou-se a narrar o sucedido, e dizer que afinal Trasíbulus não lhe transmitiu qualquer conselho. Uma coisa completamente maluca, disse ele a Periandros. Mas Periandros ficou satisfeito com o relato, e mandou o arauto embora. Tinha compreendido perfeitamente o que tinha de fazer: eliminar todos aqueles que eram mais expeditos e que lhe poderiam dificultar a governança. Todos os que sobressaíssem entre os demais, era urgente livrar-se deles. "

A democracia está a morrer de cansaço. Anda às voltas a tentar corrigir a sua história, remodelando, retocando, acrescentando. A primeira coisa a fazer: é deixar-se de eufemismos e voltar às palavras originais; é substituir a hipocrisia pela frontalidade; é refrescar os formalismos com a eficácia científica; é, como ouvi dizer a alguém com piada, transformar o coito simulado em coito verdadeiro. Combater com firmeza as orgias obscenas da economia à Aston Martin. Ainda que se tenha de enfiar as calças e a camisa no corpo molhado, quando não se conseguiu encontrar as cuecas. Diz o agente: este carro só leva quatro segundos para ir dos zero aos cem. Destas equações se podem deduzir alguns corolários: temos de fugir do demónio da velocidade; temos de examinar com a língua o dente que abana; não podemos ir ao concerto vestidos de fraque e calçados com uns tamancos quaisquer.

A queda foi tão rápida que o mecânico pensou tê-lo matado. Após um instante de pasmo, verificou que ele tinha apenas perdido os sentidos. Então desatou a esbofeteá-lo.  O homem abriu os olhos, viu tudo disforme, e desatou a correr ao encontro da mulher. O seu ódio tinha sido apenas um ódio passageiro. O cientista já não podia hesitar por muito mais tempo. O homem estava de pijama; e a mulher que já não o via há séculos, estava fascinada pela estatura de um outro homem desconhecido, alto, forte, estranhamente disforme. Era o drama do homem de pijama.


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