sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Você merece. Merece?


Voltando ao slogan da L’Oréal do post anterior, o que a L'Oréal quer dizer é: “Você poderá merecer se comprar esta coisa”. O slogan original começou por ser: “Porque eu mereço”. Mas valeu a pena, para a empresa, é claro, ter mudado para: “Porque Você merece”. A questão é muito diferente, quando somos nós a merecer. As nossas vaidades estão sempre prontas ao estímulo. Subliminarmente o que sucede é a pessoa ficar desesperada porque na verdade ela não é nenhuma beldade de passadeira vermelha. Mas a L'Oréal vai levá-la aos píncaros da perfeição: "olhe para o que eu lhe digo, se comprar este creme, ou a tinta para o cabelo desta cor, estará a comprar um pouco da mesma magia, o lugar onde também poderá estar". Os seres humanos sempre se deram ao esforço de cuidarem da aparência pessoal. Nas Sepulturas da Idade do Bronze encontra-se um pouco de tudo, desde espelhos, pentes, e adornos como colares e brincos. 
A ambição de se possuir algo com tal estatuto rende à L'Oréal os seus milhares de milhões.» 

As pessoas que aparecem nos anúncios estão simplesmente para além desta linguagem de trapos. Não se importam com o que pensemos delas. A personagem no anúncio é uma ficção, uma criatura da nossa própria imaginação dirigida e manipulada. Tal como Narciso, a audiência do anúncio aproxima-se de um fantasma, que desaparecerá logo que tenha caído na esparrela de possuí-lo, com a compra de uma promessa, que não passa de uma ilusão breve, de também fazer parte de um olimpo de deuses. É uma desgraça, esta crença arrogante de que nós somos o centro das preocupações dos outros, a crença de que só temos direitos, em que os deveres são para o Estado e os governantes. E o panorama que se vê agora com as redes sociais, é que não vamos para melhor, mas para pior. Todo o tipo de egocêntricos aduladores e manipuladores com opiniões erradas.

É claro que não nos devemos desfocar do essencial. Os cirurgiões plásticos têm uma razão de ser, que tem a ver com a deformidade, com a mutilação, que arruínam a aparência das pessoas atraiçoadas pela sorte que lhes roubou a dignidade e o sentido do Si. As desfigurações são terríveis. Mas o que é absurdo é aquelas pessoas, ao mexerem no que está quieto, ao alterarem o que
 tinha sido moldado pela evolução natural da ordem da vida com aquele tipo de operações plásticas, se desfiguram. Estes casos de cosmética não têm nada a ver com o acidente ou o infortúnio da doença que desfigurou, e que precisa do auxílio da cirurgia plástica reconstrutiva. Ao fim de contas não dá boa reputação acabarmos sob o bisturi do cirurgião, em que a demanda do corpo perfeito foi inflacionada pela indústria da cirurgia estética, numa ímpia aliança com o mundo da moda e do Photoshop. Por conseguinte, o que você está a merecer é ser vítima dessas manipulações indignas. Infelizmente, no mercado do recrutamento de pessoas para um emprego, é melhor ser-se mediano e ter boa aparência, do que ser-se brilhante e pouco atraente. Não admira que o mundo do trabalho e do emprego tenha chegado onde chegou. Uma grande confusão de valores. 

Não são só mulheres a caírem neste engodo, tenha calma. Os homens também andam amedrontados, e desesperados com a sua aparência por efeito da idade, da poluição, dos vícios, dos desleixos, da gulodice. Todo esse medo escraviza-os num mundo de dor, desespero e miséria. Milhões de pessoas em todo o mundo se submetem voluntariamente ao bisturi do cirurgião plástico por vaidade. Ainda tenho memória do que aconteceu em França há já uma década quando foi dado o alarme das próteses de silicone mamárias defeituosas em cerca de 30 mil mulheres. E elas apavoradas com a possibilidade de o implante rebentar-lhes no corpo a todo o momento: "Os antidepressivos que algumas tinham deixado de tomar, com o efeito curativo dos implantes mamárias, agora voltaram a ter de tomar, porque vivem com uma bomba relógio dentro do corpo. Nem conseguem dormir." 

Narciso era afinal uma figura ridícula vítima do seu amor próprio. E ao mesmo tempo o engodo e o alvo de tal vaidade. Ninguém deveria aceitar a futilidade da vaidade e da arrogância, a falta de decoro ao ir meter-se nas mãos de um cirurgião plástico por triviais razões cosméticas. Poderia dizer-se que é como se o corpo não fizesse parte do Ser, mas parte do Ter, como um anel, um broche ou um Porsche. Um terrível exemplo de cobiça e inveja. É que a vaidade precisa da lisonja, do elogio. Mas as outras pessoas têm outros interesses, que são os seus. A lisonja continua a ser um bem escasso. Na mitologia grega Narciso foi deixado por sua conta. E essa também era uma moral a retirar do mito.

A questão de fundo é que a cobiça desonra o melhor "sentimento de Si", a melhor ideia que temos de nós mesmos. Depois de termos sido tolhidos pelo aperto da serpente, é quase impossível sair do carrocel da ganância, da vaidade nunca satisfeita, que obviamente acaba na ganância do dinheiro. A magia não funciona, e o consumismo tomba inevitavelmente num fracasso estrondoso. Mas a imaginação é persistente, teimosa, e tenta de novo. E assim se abre um sombrio processo de pessoas que se tornam clientes desesperançadas, suplicantes, desfiguradas caçadoras de ilusões de um belo infinito, cujo favor reverte para os cofres do fabricante.

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