quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Uma obstrução de 90% no tronco comum da 'corona' (segunda parte)

 

É muito interessante ver como se dá o nome às coisas da medicina. Por exemplo, este recente vírus da pandemia Covid-19 é um coronavírus por ter uma estrutura em forma de coroa. E por isso lhe chamamos "o Corona". Ora, o nome das artérias coronárias, as artérias que irrigam e alimentam o músculo cardíaco, seguiu o mesmo critério, porque a coronária esquerda e coronária direita subdividem-se depois em várias artérias envolvendo o coração, cobrindo toda a superfície do músculo cardíaco como uma coroa, Corona na etimologia latina. E o tronco comum é uma pequena extensão da artéria coronária esquerda junto à bifurcação, responsável pela irrigação de toda a metade esquerda do coração. Uma obstrução significativa no tronco comum leva a que todas as artérias a jusante do obstáculo deixem de receber sangue e, como consequência, a metade esquerda do coração entra em falência imediata. 

Já me encontro no Hospital de Santa Marta deitado numa maca encostada à parede, a aguardar ser chamado para fazer a tal coronariografia, quando ao meu lado surge um homem novo que me cumprimenta afavelmente. Diz o nome, que não percebo, mas percebo que é o médico que me vai fazer o exame às coronárias. Tem um ar achinesado, uma poupa de cabelo sal e pimenta avarandado na testa, que bem o podíamos ver numa fita do James Bond. Ele tem o tipo de quem está atento, de quem entende o que é andar perdido nos corredores da doença. De quem não se esqueceu que um doente é, no mínimo, constituído por cabeça, tronco e membros. Chegado à sala sem janelas, ampla, cheia de gente mascarada de verde, passar-me para uma cama iluminada como um palco, em tudo semelhante a uma mesa de operações.

O médico depois de lhe anestesiar a virilha, pega numa vareta, semelhante a um esticador de cortinas, que vai introduzir pela artéria ilíaca acima e viajar até ao coração, e o médico avisa que vai sentir uma sensação de calor.

Sinto uma ardência pelo corpo, como se nos despejassem um whisky duplo diretamente no interior das veias. Sentimo-lo dar a volta ao corpo  num ápice de montanha russa, com dois locais sublinhados na passagem: o céu da boca, que fica quente como se lhe tivessem aplicado um sinapismo e, vá-se lá saber porquê, a zona púbica.

Concluído o exame, o médico não tem boas notícias para lhe dar. Tem que ficar internado de imediato para ser operado. Tem que ser feito um by-pass, porque tem uma obstrução de 90% no tronco comum.

Tenho fome e sinto-me desanimado, a equilibrar um pedregulho de chumbo na virilha, outro a tolher-me a alma. É uma novidade explosiva para assimilar ou engolir (o problema é meu): amanhã, ou depois, vou ser operado ao coração.    Ao ❤️. Uma obstrução de 90%! Quer dizer: não passa pinga de sangue pelo tronco comum. Por isso caí redondo, como um tordo. Tem finalmente explicação a brutalidade do que me aconteceu.


 

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