terça-feira, 5 de janeiro de 2021

No melhor pano pode cair a nódoa da teoria conspirativa, negacionista e pseudocientífica


Muitos de nós ficam estupefactos por ver cientistas, que até dado momento da sua carreira, depois de se terem tornado referência e revelado grandes expoentes na sua área de estudo, manifestarem pontos de vista ou opiniões sobre outras áreas do conhecimento completamente disparatadas. Um exemplo, que vem agora a propósito, é o do cientista inventor da técnica do PCR (Polymerase Chain Reaction) – que é a técnica mais fiável nos testes à presença de infeção pelo vírus SARS-CoV-2 da atual pandemia covid-19 – Kary Banks Mullis [1944-2019]. Um bioquímico americano cujo reconhecimento pela invenção da sua técnica lhe valeu o Prémio Nobel da Química em 1993 com Michael Smith. A sua invenção da Reação em Cadeia da Polimerase é hoje um padrão em biologia molecular, ao ponto de muitos biólogos dizerem que o PCR faz a demarcação 'do antes e do depois' em biologia.

Depois da brilhante ideia, Mullis abraçou uma variedade de convicções pseudocientíficas, tornando-se um negacionista das alterações climáticas e do facto de o vírus HIV causar a SIDA, chegando até a mostrar-se crente na astrologia. Não é o primeiro Nobel a abraçar convicções pseudocientíficas, fenómeno que talvez represente a mais exclusiva manifestação do efeito Dunning-Kruger. Mas isso não descredibiliza a boa ciência feita por Mullis, extensamente confirmada por outros cientistas.

As pessoas demasiado incompetentes conseguem estender a sua incompetência quando se trata de avaliar a sua própria ignorância e estupidez. Este fenómeno foi objeto de estudo em psicologia cognitiva por dois investigadores, que ficou com o seu nome “efeito Dunning-Kruger”. Inclusivamente, daqui se pode reconhecer a falta de credibilidade por parte destes negacionistas que movimentam cartazes com o slogan “pela verdade”, surpreendentemente comprometidos com profissões tais como jornalistas, juristas e até médico, padecendo da mesma sina. É precisamente a ignorância que faz mover presunções de certeza atrevida 
sobre qualquer assunto. 

De tempos a tempos emergem estes demónios do medo do conhecimento. Lembremo-nos do conflito surgido nos anos da década de 1990 envolvendo criacionistas e tribos do Lakota e dos Cheyenne River Sioux reabilitando antigos mitos de criação dos povos nativos americanos contestando a teoria dos cientistas antropólogos  e arqueólogos de que os seres humanos entraram no continente americano vindos da Ásia atravessando o estreito de Bering 13.000 anos a.C.
Sabemos de onde viemos. Somos descendentes do povo Búfalo. Eles vieram do interior da Terra depois de os espíritos sobrenaturais terem preparado este mundo para que a humanidade aí vivesse. Se os não-índios preferem acreditar que evoluíram de um macaco, seja. Nunca encontrei nem sequer cinco Lakotas que acreditassem na ciência e na evolução.
É claro que nessa altura estava ao rubro a atração por parte de alguns cientistas da antropologia cultural e etnologia pelo relativismo e construtivismo pós-moderno, com a seguinte tese: "a ciência é apenas uma das muitas maneiras de conhecer o mundo. A ciência é mais um sistema de crenças tão válido como a mundivisão das tribos nativas. Por isso a ciência deve ser rejeitada como forma privilegiada de ver o mundo". Por muito impressionante que sejam estas afirmações, não teriam qualquer importância se não tivessem um grande acolhimento entre académicos de algumas faculdades norte-americanas no campo das humanidades e ciências sociais. Faziam circular a ideia filosófica de que existem muitas formas igualmente válidas de conhecer o mundo.

Como é que tantos académicos contemporâneos acabaram por se deixar convencer de uma doutrina tão radical? Uma das explicações reside no acordar académico para as questões pós-coloniais e para o despertar dos povos cujas tradições e culturas foram divididas por estranhos a régua e esquadro. Por exemplo, antes da Primeira Guerra Mundial uma família do agora Iraque que tinha parentes noutra família da atual Síria de tempos a tempos visitavam-se mutuamente sem terem de pedir licença a ninguém. Sucede que depois esta região foi traçada a fronteiras com linhas imaginárias nos mapas. Mas o terreno ficou na mesma. Então um membro de uma dessas famílias interroga-se a que título um estranho qualquer lhe vem dizer que continuar a visitar os seus parentes do lado de lá tem de ter um papel autorizado por uma repartição distante e estranha ao modo de vida que as suas famílias e os seus ancestrais sempre tiveram ao longo de séculos?

Ora, legitimamente muitos académicos foram sensíveis a tais argumentos. Era preciso arrumar as ideias. E, por conseguinte, o primeiro passo teria de ser ideológico e não científico. O melhor pensamento filosófico do nosso tempo teria de afastar as conceções objetivistas do passado. E esta conceção transformou-se num movimento que atravessou todas as questões sociológicas que se prendiam com a política. Este movimento pós-moderno levou de arrasto outras questões que já estavam latentes há muito tempo e que se prendia com o patriarcado. Todo o conhecimento, dizem, é socialmente dependente porque todo o conhecimento é socialmente construído. Segundo esta ideia, a verdade de uma crença não é uma questão de como as coisas se relacionam com uma realidade que existe de forma independente.

Sobretudo aquelas pessoas cuja organização cerebral se pode classificar de "paranoide", ou seja, com tendência para a paranoia que consiste em interpretar o mundo com desconfiança desmedida devido a um sentimento persecutório, resvalando facilmente para as chamadas teorias da conspiração, não compreendem que faz parte da ciência cometer erros. Só que a sua vantagem é que faz parte da sua essência detetá-los e não professar certezas. Ao contrário do que se possa pensar, a certeza não é estatuto que faça parte da ciência. É muitas vezes na tentativa e erro, voltar a tentar corrigir os erros e voltar a errar, até que algo de eureka acontece com força suficiente para que uma larga camada de cientistas se renda à evidência dos factos. A ciência não é só um corpo de conhecimento. É também, e acima de tudo, o método para o obter, ou seja, o modo como se acrescenta novo conhecimento ao que já existe. O processo científico depende da interação, tanto cooperativa como competitiva, entre cientistas. Não há ciência sem comunicação, que começa entre pares antes de chegar ao conhecimento público. Em suma, a ciência é feita por uma comunidade cuja troca de conhecimento é cada vez mais multidisciplinar. 

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