quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

O Grande Declínio


Pensemos no microbioma humano, mais dois quilos no peso do nosso corpo de biliões de bactérias cooperantes a contribuir para que cada vida humana mantenha aquele equilíbrio homeostático a que chamamos saúde, sem o qual não sobreviveríamos. Assim podemos dizer sem receio que a inteligência na Terra começou com as bactérias, seres vivos aos quais lhes faltam, todavia, aquilo que tanto presamos em nós: uma mente consciente.

Um ensaio com bactérias serve para exemplificar a Grande Aceleração que se desencadeou a partir da década de 50 do século passado após a 2º Guerra Mundial. A Terra é comparável a uma placa de Petri - 
um recipiente cilíndrico, achatado, de vidro ou plástico que os profissionais de laboratório utilizam para a cultura de microorganismos, um sistema fechado e finito. Então vejamos. Uma placa de Petri é um meio nutritivo fechado onde são colocadas algumas bactérias. As bactérias demoram algum tempo a adaptar-se ao meio, um período chamado fase de latência que demora algumas horas ou dois dias no máximo até as bactérias descobrirem como tirar proveito do novo meio. E subitamente, começam a reproduzir-se numa cadência de duplicação que em princípio é de 20 em 20 minutos. Um crescimento exponencial que se espalha por toda a superfície da placa. Esta é a fase de competição, cada bactéria por si, que os cientistas sabem que não vai acabar bem quando o alimento se esgotar e as bactérias começarem a agir umas contra as outras. A partir daqui o ambiente começa a envenenar as bactérias, com um aumento crescente de gases, calor e lixo. E então começa a desenrolar-se o princípio do fim, com as bactérias a morrerem numa escala também exponencial. 

O mesmo se passa com a Grande Aceleração do pós-guerra, o período sem igual de paz no Ocidente que deve estar a chegar ao fim, com o último grito da Inteligência Artificial trazida pela Grande Aceleração. Um progresso notável. Os cientistas dos ecossistemas e da sustentabilidade ambiental encontraram já os pontos por onde o sistema está a romper. Poluição do ar, terra e água: efeito estufa dos combustíveis fósseis por via do aumento do dióxido de carbono; poluição das águas com excesso de fertilizantes pesticidas e plásticos; diminuição drástica da taxa de biodiversidade nos trópicos e nos oceanos. Com o aquecimento global já estamos a viver para lá das possibilidades da vida segura na Terra.

As alterações climáticas e o aquecimento global, para muitos cientistas, constitui uma crise muito mais grave do que a pandemia do SARS-CoV-2. A Covid-19 vai passar. Vista daqui a poucos anos, será um acontecimento que se limitou a fazer uma pequena correção do desvio demográfico. Ao passo que as alterações climáticas e o aquecimento global vão perdurar por muitos anos, porque se vai autoalimentar. O declínio autoalimenta-se. Quanto mais a Amasónia se degrada, e quanto mais nos Polos o gelo derrete, mais a degradação aumenta. Este estado de acontecimentos vai manter-se por mais alguns anos, e a manter-se o mesmo padrão de normalidade civilizacional, é muito provável que entremos irreversivelmente no Grande Declínio já em curso nesta terceira década do século XXI.

Ainda não nos livramos desta pandemia, e há cientistas a prognosticar que outra pandemia poderá surgir a todo o momento, piorando ainda mais a situação. Entre aves e mamíferos escondem-se milhões de vírus que constituem uma ameaça para os humanos à medida que vamos fraturando a biodiversidade. A biodiversidade e a estabilidade do planeta estão ligadas. E já muita biodiversidade foi destruída. E não se sabe se somos capazes de recuperar uma boa parte da vida selvagem já perdida. E muito menos se continuar a perder-se. O bisonte-europeu, que existiu até ao século XX, foi caçado até à extinção. Entretanto muitos países voltaram a introduzí-lo na natureza a partir de cativeiro, com enorme sucesso.

Para podermos construir máquinas inteligentes tivemos de passar primeiro, evolutivamente falando, pela aquisição de toda a panóplia de competências arrumadas categorialmente no universo dos afetos. O universo dos afetos foi tanto uma fonte como um instrumento no desenvolvimento da autonomia gradual que os seres humanos conquistaram. E, felizmente ou infelizmente, foi o que os construtores dos novos robôs já perceberam e começaram a tentar fazer isso com a colocação de sensores para a atribuição de um proprietário robótico desse corpo. É a chamada soft robotics. Esta novidade tem despertado nas pessoas uma dupla reação antagónica, ora de júbilo, ora de susto.

O dispositivo fundamental da inteligência é o da vida propriamente dita. As bactérias são os seres vivos mais antigos da Terra, e que perduram há cerca de quatro mil milhões de anos devido a algum tipo de inteligência que é a sua. As bactérias para conseguirem isso usaram um conjunto de processos químicos que constituem a homeostasia, um plano fundamental de que nós também dependemos. E, todavia, o principal causador do desaparecimento, ou tendencialmente em vias de desaparecimento, dos melhores ecossistemas vivos da Terra, é o ser humano, a caminhar como sonâmbulo rumo à catástrofe.

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