sábado, 9 de janeiro de 2021

Anamnese de um enfarte do miocárdio (primeira parte)


A seguir ao jantar, num dia a meio do mês de junho, tendo comido pouco, e ainda à mesa, começou a sentir uma sensação estranha, a imagem e a conversa da mulher e do filho a distanciarem-se, ele a perder a nitidez da visão, como se os seus sentidos estivessem a escorregar para outro nível, até que um enjoo o impeliu da mesa num ímpeto vertical em direção ao corredor, apercebendo-se de que já estava todo encharcado em suor, sentou-se num degrau das escadas a resvalar para o chão, na altura em que a mulher chegou e se apercebeu de que algo de grave se estava a passar com ele.

De imediato a mulher dele pegou no telefone fixo e pediu ajuda a uma amiga médica que morava perto. A amiga foi rápida a chegar. E as duas mulheres mais o filho de dez anos meteram-se com ele no carro e dirigiram-se rapidamente para o Centro de Saúde local.
«O ar fresco da noite fez-me vir à tona e apercebi-me que era um trambolho. Mas não me doía nada. O que me estava a saber bem era o ar fresco da noite a entrar pelo carro dentro. Ao chegar ao Centro de Saúde já não via nada, embora sentisse roídos e pessoas a falar. Sabia onde estava, por trabalhar aí como médico, há quinze anos, conhecia o edifício como a palma das minhas mãos.»
Ao ser observado por um colega que conhecia disse: «ouço-te, mas não te consigo ver. Mas diria que não estou cego, porque vejo um halo luminoso onde tu estás.»

Ele apercebia-se do corpo do colega pelo halo luminoso que envolvia o seu corpo, uma cercadura de luz amarela e brilhante de onde saía uma voz conhecida, mas como se saísse de um altifalante. De resto sentia uma calma tal que não estava nada preocupado com o que se estava a passar com ele. Depois dos procedimentos de suporte básico, meteram-no numa ambulância a caminho de uma unidade hospitalar mais diferenciada.
«Estou dentro de uma ambulância e várias vozes a falar, tudo a balançar e a chocalhar à minha volta. A máscara de oxigénio começa a incomodar-me no nariz, e de olhos abertos só vejo uma luz em arco dentro de mim. Fecho os olhos: igual, luz em arco. Sinto-me entorpecido e mole, a resvalar mansamente para um adormecer. Não tenho bem a certeza, mas acho que vejo ali o meu corpo em baixo deitado num plano inferior àquele em que me encontro - o meu eu solto numa espécie de túnel circular envolto numa luz intensa amarelada numa textura translúcida como azeite em garrafa. Isto é o tal túnel, pensei, e estou-me a ir embora, ao mesmo tempo surpreendido com a minha calma.»
«De súbito um estremeção no corpo, como acontece às vezes quando estamos quase a adormecer. A máscara do oxigénio comprime-me o nariz. Abro os olhos e refilo: esta merda magoa-me. É horrível respirar assim. Inspiro fundo como para ter a certeza de estar inteiro. Reconheci a Urgência do Hospital, enquanto a maca abria caminho para o interior eu ia encarando em contrapicado sucessivas cabeças a esticarem-se sobre aquele chouriço amarrado a uma maca. Os basbaques do costume, voyeurs de berma de estrada, a cocar se a encomenda que agora chega vem em melhor ou pior estado do que a que chegou cinco minutos antes. De mim não hão de eles sacar nada! »
«O médico usa óculos, e desenrola diante dos olhos atentos a tira de papel quadriculado do eletrocardiograma. Abana a cabeça e diz: "aqui não parece haver nada Ora vamos lá tirar a camisola para ver isso melhor". E dirige a mão para o estetoscópio que usa como se fosse uma estola de borracha e metal aninhado no pescoço: "tente ser cooperante e ajude a levantar". Finco o corpo nos cotovelos, levo as mãos à cintura e puxo para cima com toda a força para desprender a fralda da t-shirt preta do cós das calças de ganga. Nesse momento tudo cessou de existir.»
Agora segue-se o relato médico: 


A cara e a boca torceram-se num esgar, os olhos reviraram-se nas órbitas e todo o seu corpo foi violentamente sacudido em convulsões com descontrolo de esfíncteres, seguido de paragem cardiorrespiratória. Na reanimação foi preciso recorrer ao desfibrilador. Voltou ao mundo dos vivos, e depois de estabilizado foi internado na unidade cuidados intensivos cardíacos (UCIC). O cardiologista finalmente vai ao encontro da colega amiga do paciente e diz: "o caso é bastante grave, não dê muitas esperanças à mulher dele". Passava da meia noite.

É um novo dia, e a narrativa volta na primeira pessoa:
«Acordei com o tropel dos rodízios pela calha do teto: a cortina que me embrulhou durante a noite recolheu contra a parede. Uma voz simpática deu-me os bons dias e perguntou como passei a noite. Cabelo negro, asa de corvo, e curto. E como ave que é, cantarola. Com uma grácil extensão do queixo ela aponta o meu peito: "parece um Cristo!; olhe só, marcas de murros, uma queimadela do desfibrilador!" Tento sentar-me na cama para observa melhor. "Quietinho. Não vai sair da cama por nada está bem?" O meu aspeto exterior pode ser assustador, o quadro clínico será porventura reservado, mas não fosse a proibição de me levantar da cama diria que estou de perfeita saúde. Isso é deveras confuso, sentirmo-nos como é costume e tratarem-nos como se fôssemos estourar a qualquer momento. Tinha passado uma semana quando fui chamado para fazer um ecocardiograma. Um tipo moreno e magro, sentado ao computador disse: "Você teve um enfarte extenso, mas está a recuperar bem".»
No dia seguinte o seu médico assistente disse-lhe que no dia seguinte ia a Santa Marta fazer uma coronariografia. Não tardou aparecer a enfermeira para rapar os pêlos do púbis e de ambas as virilhas. Começou a sentir uma aragem de sorte para os seus lados.

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