terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Sophia



Ao nosso lado os mortos em surdina /Bebem a exalação da nossa vida. /
São a sombra seguindo os nossos gestos, /
Sinto-os passar quando leves vêm / Alta noite buscar os nossos restos.

Sophia de Mello Breyner Andressen – do poema: “Os mortos de Hécate”

Hécate
, deusa grega dos mortos, fere à distância, agindo segundo a sua vontade, é a qualidade em que se baseia especialmente Hesíodo da Teogonia, 425-435. Na imagem, Hécate está representada num friso do Altar de Pérgamo, que se encontra no Museu Pergamon, em Berlim. 

Estava associada a encruzilhadas, entradas, fogo, luz, a lua, magia, bruxaria, o conhecimento de ervas e plantas venenosas, fantasmas, necromancia e feitiçaria. Ela reinara sobre a terra, mar e céu, bem como possuía um papel universal de salvadora. Ela era uma das principais deidades adoradas nos lares atenienses como deusa protetora e como a que conferia prosperidade e bênçãos diárias à família.




Sophia perde-se nos caminhos. Adora viagens. Diz que nunca conseguiu encontrar um nome numa lista telefónica. Assim como se irrita quando ouve a campainha da porta ou do telefone. Por outro lado, é uma pessoa que mergulha nos poemas como gosta de mergulhar no mar. E esta qualidade já lhe tem feito muito mal à memória de trabalho, a chamada memória de curto prazo, aquela que se apaga com facilidade. Um dia esqueceu-se de um filho ainda pequeno, embora traquinas, numa loja onde entrou para comprar alguma coisa. E o miúdo escapuliu-se para explorar todo aquele bricabraque. Já estava na rua quando se lembrou que se tinha esquecido do filho na loja. Obviamente que o foi buscar a correr. Mas quando chegou à loja, a criança estava amuada, o que custou embaraços a Sophia para provar que era a mãe da criança. 



Sophia bebe muito chá e fuma cigarros atrás de cigarros, como se vê nesta sua bela fotografia. 

Os versos de Sophia não têm palavras a mais. Qualquer poema perde por uma palavra a mais que se torna desnecessária. Os poemas de Sophia são de uma avidez de luz e de mar: Quando eu morrer voltarei para buscar / Os instantes que não vivi junto ao mar. Sophia tomou como epígrafe de vida a frase do bisavô dinamarquês: “A minha casa é o caminho do mar”. Quanto ao avô, Sophia ouvia-o a entoar Camões, e "Camões parecia-me um palácio de vidro, transparente, luminoso, atravessado por uma luz doirada.”

Miguel Sousa Tavares, um filho, lembra-se dela sempre a recitar poesia em voz alta e a dançar pela casa enquanto lia. Nunca eram poemas dela. Esses escrevia-os a altas horas, quando os meninos supostamente deviam estar a sonhar com as histórias que ela lhes lia até adormecerem. O marido, Francisco Sousa Tavares, por vezes vinha a Pide e levava-o preso. Nessas ocasiões, Sophia pegava no seu pequenino Miguel e deitava-o na sua cama. Tinha medo, sobretudo medo de fantasmas.

Sophia de Mello Breyner Andersen nasceu a 6 de novembro de 1919 no Porto. Tem origem dinamarquesa pelo lado paterno. O seu avô, Jan Andresen, desembarcou um dia no Porto e nunca mais abandonou esta região, tendo o seu filho João Henrique, em 1895, comprado a Quinta do Campo Alegre, hoje Jardim Botânico do Porto. Como afirmou em entrevista, em 1993, essa quinta "foi um território fabuloso com uma grande e rica família servida por uma criadagem numerosa". A mãe, Maria Amélia de Mello Breyner, é filha de Tomás de Mello Breyner, conde de Mafra, médico e amigo do rei D. Carlos. Maria Amélia é também neta do capitalista Henrique Burnay, de uma família belga radicada em Portugal, e futuro conde de Burnay.

Sophia de Mello Breyner Andresen faleceu, aos 84 anos, no dia 2 de julho de 2004, em Lisboa, no Hospital Pulido Valente. O seu corpo foi sepultado no Cemitério de Carnide. Em 20 de fevereiro de 2014, a Assembleia da República decidiu homenagear por unanimidade Sophia com as honras de ficar no Panteão Nacional. A cerimónia de trasladação teve lugar a 2 de julho de 2014.

Desde 2005, no Oceanário de Lisboa, os seus poemas com ligação forte ao Mar foram colocados para leitura permanente nas zonas de descanso da exposição, permitindo aos visitantes absorverem a força da sua escrita enquanto estão imersos numa visão de fundo do mar.

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