sexta-feira, 5 de março de 2021

A revolução digital é a revolução de Gutenberg virada do avesso


Quando Johannes Gutenberg morreu em 1468, as tipografias acabavam com a exclusividade dos Clercs de levarem ao povo a palavra de Deus. A revolução de Gutenberg constituiu a primeira revolução da informação. A Internet foi outra revolução na democratização da informação a uma escala global, afetando as vidas de milhares de milhões de pessoas. Mas agora descobriu-se um detalhe: há mais informação escondida, apenas acessível a uma minoria de Clercs computacionais a trabalhar para um número ainda mais reduzido de empresas privadas, mas que são gigantescas. E é esse o avesso: a revolução de Gutenberg retirou o exclusivo da informação que estava na posse dos Clercs, para a democratizar; a revolução digital devolve aos novos Clercs o exclusivo da posse da informação que mais importa, deixando o povo de novo às escuras. 
O diretor de pesquisa da Gartner, a respeitada empresa de aconselhamento e pesquisa de negócio, afirma-o sem ambiguidades, ao referir que o domínio da "internet das coisas" será uma competência chave para transformar os modelos de negócio com níveis de desempenho garantido para resultados garantidos. 

A concentração de talento em Inteligência Automática na Google reflete uma tendência mais vasta. Há uma geração de cientistas de dados que em vez de estarem a ensinar outros nas universidades, estão a trabalhar com elevados salários em empresas de tecnologia como a Google, à cabeça de todas as outras. O intelecto e o conhecimento na área da inteligência artificial encontram-se concentrados em meia dúzia de empresas. E a sua genialidade é usada para arrombar os portões da experiência humana, transformá-la em dados e traduzi-la num novo colosso de mercado que cria riqueza a partir da previsão, influência e controlo do comportamento humano. Uma amalgama de profetas, bruxas e adivinhos.

A Google está cada vez mais difícil de apanhar, não tem rival na sua combinação de escala ao nível da Inteligência Automática (IA), tanto na estrutura como na ciência. A Google recorre aos seus próprios arquivos de dados, para treinar os seus próprios algoritmos, que funcionam nos seus próprios circuitos integrados. É a chamada aprendizagem das máquinas.

O novo tipo de mercado recém-nascido, que é o do digital e da internet das coisas, para ser lucrativo ainda tem de ser mais certeiro na previsibilidade do comportamento dos consumidores. Ou seja, ainda vão ter de entrar mais fundo na intimidade das pessoas, no conhecimento do self - as nossas personalidades, emoções e livre arbítrios. Todos os níveis de intimidade a serem automaticamente captados e uniformizados, num fluxo infernal de unidades de dados para alimentar as fábricas de produção de certezas. A Google/Alphabet, Facebook, Microsoft, e muitas outras empresas congéneres, são essas fábricas, ávidas por dados e meta-dados. O manancial comportamental tem de ser vasto, em grande escala, mas ainda assim é insuficiente. Para ser suficiente para a previsão comportamental, precisa de intervir na fonte, que somos todos nós, moldando-nos e manipulando os nossos sentidos.

Este tipo de economia requer arquiteturas automáticas na vida real. É o novo conceito de economia de ação, que consiste na configuração de processos automáticos que intervenham no relacionamento de pessoas com pessoas, e de pessoas com as coisas reais no mundo real. Do ponto de vista da internet das coisas, o mundo, o self e o corpo, são reduzidos à qualidade permanente de um objeto. O automóvel, a máquina de lavar, o computador, diluem-se numa única dimensão de equivalência entre sujeito e objeto, para se transformar em oráculo do admirável mundo novo, para que se acabe de vez com a incerteza. Um exemplo disto, que me ocorre, é o nosso carro desligar-se automaticamente se deixarmos expirar o prazo do pagamento do seguro, depois de termos sido avisados três vezes no telemóvel.

À arquitetura de extração de dados combina-se uma nova arquitetura de execução tendo como objetivo satisfazer interesses económicos escondidos. As seguradoras sabem de longa data que o risco se correlaciona grandemente com o comportamento e personalidade do condutor. Ora, o sistema remoto de monitorização sensorial da telemática moderna é agora capaz de providenciar uma corrente continua de dados que indica a nossa localização, a nossa atuação, e as condições do veículo integrando as informações do tablier e do smartphone. Enfim, um novo capitulo de êxitos. A China está nessa. A telemática não se destina apenas a saber, mas também a atuar. Trata-se da aplicação de regras de forma musculada. E nas democracias? Será que as pessoas estão dispostas a perder a liberdade e a privacidade para em troca adquirirem coisas pelo preço da uva mijona?

Nós deliciamo-nos com os documentários da Vida Selvagem da BBC, ou da National Geografic, mas não imaginamos a grande complexidade que está por trás da captação daquelas imagens. Por exemplo, os cientistas, para estudar o comportamento natural das tartarugas gigantes nas ilhas Galápagos, conseguiram que a tartaruga engolisse um pedaço suculento de cato no qual estava introduzido no seu interior uma pequena geringonça repleta de sensores. Até aqui, tudo maravilhoso, com os animais da vida selvagem. Agora imaginem quando chegar a nossa vez.

É claro que estes cientistas das chamadas tecnologias envergáveis, têm de ser cientistas super, reunindo no seu arcaboiço saberes da física, da biologia, da engenharia eletrónica, e até da cirurgia. A captação de aspetos biológicos e comportamentais dos animais no seu habitat natural é um trabalho de telemetria, com a introdução de sensores tão compactos no corpo do animal sem que ele se aperceba disso. Já se conhece bem demais a história humana para não sermos ingénuos ao ponto de pensar que não há motivo para recear que tais coisas não passem também para as criaturas humanas. Até porque a barreira já foi transposta.

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