terça-feira, 30 de março de 2021

Da Alma (Self, Selbst, Si mesmo)




Platão e Aristóteles definiram a psiché  (alma) como um intelecto imortal e perpétuo. 
Aristóteles enfatiza a alma observada nos seus atos. Por exemplo, é como se uma faca tivesse uma alma: o ato de cortar seria considerado essa alma, porque "cortar" faz parte da essência do que é ser uma faca. Mais precisamente, a alma é a "primeira atividade" de um corpo vivo. Este é um estado, ou um potencial para a atividade real. A qualidade 'cortar' do machado é idêntica à qualidade 'pensar' do ser humano. O potencial para atividade racional constituía, assim, a essência de uma alma humana. Ele afirma: "A alma é uma realidade ou essência formulável de algo que possui uma potencialidade de ser animada", e também: "Quando a mente é libertada das suas condições atuais, ela aparece exatamente como é, e nada mais". " De Anima" é a obra principal de Aristóteles sobre o assunto.

Civilizações ocidentais e orientais têm-se ocupado todo o tempo com o autoconhecimento, precisamente aquilo que nos distingue definitivamente da restante criação. Para Sócrates, o objetivo da filosofia era o nosso autoconhecimento. E por outras palavras é o que Lao Tzu diz no Tao Te Ching, e o mesmo dizem os Upanishads e o Bhagavad Gita. O autoconhecimento descreve a capacidade de detetar que as sensações, pensamentos, estados mentais e atitudes são nossas. A teoria racionalista, inspirada em Kant, também afirma que a nossa capacidade de alcançar o autoconhecimento através da reflexão racional deriva, em parte, do facto de nos vermos como agentes racionais. Esta escola rejeita que o autoconhecimento seja meramente derivado da observação, pois reconhece o sujeito como autónomo, devido à sua capacidade de agência, é capaz de moldar os seus próprios estados de consciência. 

As experiências com pacientes que sofreram o corte do corpo caloso como medida cirúrgica para resolver certas epilepsias resistentes a todos os tratamentos farmacológicos, mostraram-se inconciliáveis com a antiga ideia de Alma, um termo equivalente ao hebraico Néfesh, ao sânscrito Ātman, ao grego Psykhé e à Anima em latimUma divisão física do cérebro produz como que duas almas diferentes que possuem propósitos, gostos, opiniões, personalidade e pensamentos diversos, embora compartilhem lembranças de factos anteriores à separação dos hemisférios. De uma forma geral, a ciência moderna estuda o cérebro humano sem fazer referências a uma alma imaterial, uma vez que, se existe, não pode ser observada nem medida pelos instrumentos da tecnologia. Apesar disso, os cientistas também são humanos como as outras pessoas, com as suas fraquezas e suas fantasias, e alguns cientistas não têm resistido à tentação de procurar evidências da existência de uma alma humana.

Numa experiência feita a um indivíduo que tinha os dois hemisférios separados, isto é, sem a comunicação normal feita pelo corpo caloso entre os dois hemisférios cerebrais, verificou-se algo de extraordinário quando se lhe perguntou: se pudesse escolher a profissão ideal, qual era a que escolheria para si. Verbalmente, o paciente respondeu: "Arquiteto". No entanto, quando lhe pediram que escrevesse a resposta com a mão esquerda, o resultado foi surpreendente: “Piloto de Fórmula 1”. Ora, sabemos que os centros da fala estão localizados no hemisfério esquerdo; e para a escrita com a mão esquerda, os destros precisam do hemisfério direito. No corte do corpo caloso, o hemisfério esquerdo (o que fala) deixa de ter acesso ao hemisfério direito, a comunicação entre os dois hemisférios está cortada. E como o hemisfério direito não tem acesso aos centros da linguagem, a fonte da informação deixa de coincidir com a informação dos centros da linguagem que estão no hemisfério esquerdo. Neste caso, a pessoa parece que tem duas consciências independentes. E sabe-se que enquanto o hemisfério esquerdo é a fonte da razão, o hemisfério direito é a fonte da emoção e da intuição, que no estado normal trabalham em conjunto para obter o resultado final. Ou seja, na tomada de decisão é o lado emocional que tempera o lado racional.

Muitas das receitas atuais para uma alma saudável - que hoje vemos receitar nos programas de entretenimento dos canais de televisão ocidentais, para termos uma vida psíquica e física mais saudáveis - têm origem em teorias meditativas vindas do Oriente. O ser humano está constantemente na ilusão de que a sua existência individual nada tem a ver com as outras espécies da criação. Mas esse sentido de si, ou sentido de existência individual, convive bem com essa natureza que cada um de nós possui para a luta num mundo que não deixa de ser selvagem. E é isso que choca. Pensamos que a identidade do sujeito da experiência é distinto de tudo o resto. Mas as discussões filosóficas contemporâneas sobre a natureza do self não são discussões sobre a natureza da personalidade ou da identidade pessoal. O self não é uma uma substância imaterial, a que todas as tradições deram o nome de alma.

Estamos no campo da subjetividade. A neurociência dá objetividade científica àquilo que é o domínio do sujeito. O sentimento, com a sua natural subjetividade, e tudo isso, se estendeu a outras subjetividades. O que temos é uma grande possibilidade, muito rica, de juntar subjetividades dentro da nossa mente. A nossa mente é toda feita de subjetividades. Sensação, emoção e sentimento são três coisas diferentes. Sensação é o que toda a espécie viva tem. As respostas mais complexas, classificadas como emoções, muitos outros seres, considerados inferiores, também as têm. Organismos simples, se lhes tocarmos, eles retraem-se, movem-se, e é o movimento que está na raiz do conceito de emoção.  São reações de movimento. O movimento está do lado das emoções. E estar do lado das emoções é estar do lado daquilo que é visível para os outros. Sensação basicamente não tem nada a ver com a emoção propriamente dita. A emoção é uma reposta complexa de movimento em relação a um estímulo que foi sentido. 

Já o sentimento, a experiência que se pensa que é apenas a criatura humana que o temé a experiência mental daquilo que se passou no organismo quando houve sensação e emoção, um terceiro degrau na escalada da menteEu, como centro de gravidade de uma narrativa, é um conceito deflacionário utilizado por Daniel Dennett, um filósofo fisicalista funcionalista, para dizer que Eus não são fisicamente detetáveis. Em vez disso, são uma espécie de ficção conveniente numa estratégia intensional (com 's', para se diferenciar do intencional de intenção), mas importado do conceito de Intencionalidade da Fenomenologia de Husserl. Segundo o conceito dennettiano de mente, que contempla vários tipos de mente, animal e artificial, das mais simples às mais complexas. 

O conceito de self, tal como conceito de mente, é entendido de muitas maneiras diferentes por diversas tradições culturais, filosóficas e religiosas. Alguns veem a mente como uma propriedade exclusiva dos seres humanos, enquanto outros atribuem propriedades mentais a todo o Universo, incluindo entidades não vivas onde cabem as divindades. Mas as visões modernas intituladas 'fisicalistas', como as de Daniel Dennett,  também não ajudam, ao reduzirem todas as propriedades mentais à física, uma entidade física pura e dura. Onde encaixar o self -“Eu”? No cérebro! E então, e os qualia? Ou seja, a fenomenologia? A única forma que Daniel Dennett arranjou para responder a isso, pelo menos no início, foi não reconhecer a existência sequer dos qualia.  E assim, deixou de fora aquela coisa difícil de definir: os qualia da consciência (em línguas anglo-saxónicas); a fenomenologia (em línguas franco-alemãs).  

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