segunda-feira, 15 de março de 2021

Do Chiúme à Baixa do Cassanje

 


O espectro de Salazar pairava sobre as calvas pias labaredazinhas de Espírito Santo corporativo, salvando-nos da ideia tenebrosa e deletéria do socialismo. A PIDE prosseguia corajosamente a sua valorosa cruzada contra a noção sinistra de democracia, primeiro passo para o desaparecimento, nos bolsos ávidos de ardinas e marçanos, do faqueiro de cristofle. O cardeal Cerejeira, emoldurado, garantia, de um canto, a perpetuidade da Conferência de São Vicente de Paula, e, por inerência, dos pobres domesticados. O desenho que representava o povo em uivos de júbilo ateu em torno de uma guilhotina libertária fora definitivamente exilado para o sótão, entre bidés velhos e cadeiras coxas, que uma fresta poeirenta de sol aureolava do mistério que acentua as inutilidades abandonadas. De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida ao Governo que me possibilitava, grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso no cais, consentindo, num arroubo de fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidão agitada e anónima semelhante à do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir, impotente, à sua própria morte.
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Outro vodka ? É verdade que não acabei o meu mas neste passo da minha narrativa perturbo-me invariavelmente, que quer, foi há seis anos e perturbo-me ainda: descíamos do Luso para as Terras do Fim do Mundo, em coluna, por picadas de areia, Lacusse, Luanguinga, as companhias independentes que protegiam a construção da estrada, o deserto uniforme e feio do Leste, quimbos cercados de arame farpado em torno dos pré-fabricados dos quartéis, o silêncio de cemitério dos refeitórios, casernas de zinco a apodrecer devagar, descíamos para as Terras do Fim do Mundo, a dois mil quilómetros de Luanda, Janeiro acabava, chovia, e íamos morrer, íamos morrer e chovia, chovia, sentado na cabina da camioneta, ao lado do condutor, de boné nos olhos, o vibrar de um cigarro infinito na mão, iniciei a dolorosa aprendizagem da agonia.
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Vamos abandonar o Chiúme na direção do norte, as viaturas em coluna aguardam que embarquemos, e eu, imóvel no centro da sanzala, enjoado pelo odor decomposto da mandioca a secar os ossos brancos no teto das palhotas, tento desesperadamente fixar, nesta manhã de janeiro lavada pela chuva da noite, imersa numa claridade excessiva que dissolve os contornos e afoga na sua luz sem piedade os sentimentos delicados ou demasiado frágeis, tento desesperadamente fixar, dizia, o cenário que habitei tantos meses, as tendas de lona, os cães vagabundos, os edifícios decrépitos da administração defunta, morrendo pouco a pouco uma lenta agonia de abandono: a ideia de uma África portuguesa, de que os livros de História do liceu, as arengas dos políticos e o capelão de Mafra me falavam em imagens majestosas, não passava afinal de uma espécie de cenário de província a apodrecer na desmedida vastidão do espaço, projetos de Olivais Sul que o capim e os arbustos rapidamente devoravam, e um grande silêncio de desolação em torno, habitado pelas carrancas esfomeadas dos leprosos. As Terras do Fim do Mundo eram a extrema solidão e a extrema miséria, governadas por chefes de posto alcoólicos e cúpidos a tiritarem de paludismo nas suas casas vazias, reinando sobre um povo conformado, sentado à porta das cubatas numa indiferença vegetal. O almirante Tomás fitava-nos da parede com pupilas de vidro idiota de urso empalhado, milícias de espingardas veneráveis adormeciam encostados à própria sombra sob os telheiros de zinco dos postos de sentinela junto ao arame inútil. E, no entanto, havia a quase imaterial beleza dos eucaliptos de Ninda ou de Cessa, aprisionando nos seus ramos uma densa noite perpétua, a raivosa majestade da floresta do Chalala a resistir às bombas, os púbis tatuados das mulheres, por trás de cuja curva de bule cresciam, ao ritmo cardíaco dos tambores, filhos que eu ansiosamente desejava menos passivos e melancólicos do que nós, que se não acocorassem, vencidos, diante das palhotas, passando-se uns aos outros o cachimbo de cabaça.
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Lá fora, o cipaio que vigiava o motor da eletricidade munido de uma espécie de mosquete de conquistador espanhol, ressonava sob o telheiro de cimento. Morcegos do tamanho de perdizes rodopiavam a cambalear nas proximidades dos candeeiros, fogos pálidos consumiam-se na penumbra densa das sanzalas, soba Macau, soba Pedro Macau, soba Marimba, junto à pista da aviação, que o capim constantemente invadia, as luzes da Chiquita tremiam, nítidas, na distância, constelação de estrelas improváveis. A seguir ao início da guerra haviam morto ou expulso para o Congo os Mô-Holos e os Bundi-Bângalas que habitavam primitivamente a Baixa do Cassanje, e substituído as suas aldeias por Gingas da área de Luanda, mais obedientes e acomodatícios depois de o seu chefe ter apodrecido vinte anos nas prisões coloniais a pretexto de um crime qualquer. De coroa de lata na cabeça, incrustada de brilhantes de vidro, posto a ridículo, perante o seu povo, pelo Estado corporativo, que o obrigava a um humilhante uniforme do imperador de carnaval, o rei vagueava no seu quimbo à maneira dos doentes mentais nas enfermarias psiquiátricas, olhado com desgosto incrédulo pelos velhos da tribo. No entanto, o soba Bimbe e o soba Caputo, do outro lado da fronteira, continuavam a luta, e avistavam-se de Marimbanguengo as bases do MPLA no Congo, construções minúsculas que cresciam. A D. Áurea inclinou-se amavelmente para a professora das menstruações de Niágara, que coçava à socapa a flor-de-congo dos sovacos: — Como vai de saúde, D. Olinda?

António Lobo Antunes - Os Cus de Judas, 1979

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