terça-feira, 23 de março de 2021

Servidões




cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo,
e alguém pegou nas cinzas e deitou-as na retrete e puxou o autoclismo,
requiescat in pace,
e eu não descanso em paz nas retretes terrestres,
a água puxaram-na talvez para inspirar o epitáfio,
como quem diz:
aqui vai mais um poeta antigo, já defunto, é certo, mas em vernáculo
e tudo,
que Deus, ou o equívoco dos peixes, ou a ressaca,
o receba como ambrosia sutilíssima nas profundas dos esgotos,
merda perpétua,
e fique enfim liberto do peso e agrura do seu nome:
vita nuova para este rouxinol dos desvãos do mundo,
passarão a quem aos poucos foi falhando o sopro
até a noite desfazer o canto,
errático canto e errado no coração da garganta,
canto que o traspassava pela metade das músicas
— e ao toque no autoclismo ascendia a golfada de merda enquanto as turvas águas últimas
se misturavam com as águas primeiras



Herberto Helder morreu em Cascais a 23 de março de 2015. Nasceu em 1930 no Funchal. Estudou na terra natal até ao 5.º ano. Em 1948 matriculou-se em Direito, mas cedo abandonou esse curso para se inscrever em Filologia Românica, que frequentou durante três anos. Teve inúmeros trabalhos e colaborou em vários periódicos como A Briosa, Re-nhau-nhau, Búzio, Folhas de Poesia, Graal, Cadernos do Meio-dia, Pirâmide, Távola Redonda, Jornal de Letras e Artes. Em 1969 trabalhou como diretor literário da editorial Estampa. Viajou pela Bélgica, Holanda, Dinamarca e em 1971 partiu para África onde fez uma série de reportagens para a revista Notícias. Escreveu diversas obras em vários géneros, mas sempre com maior afeição pela poesia. Entre tantos títulos que poderia enumerar, deixo aqui os dois últimos: ServidõesMorte sem Mestre, 2013. Em 1994 foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa, que recusou. 

Observada pelo ângulo da continuidade com que desde sempre a poesia de Herberto Helder se deu a ler, A Morte sem Mestre corresponde, à partida, a um ponto extremo: o da forçada interrupção de um corpo pela brutal emergência do fim, a liquidação da sua biologia. O livro, ele mesmo, constitui como tal um lugar-limite que acolhe um pensamento-limite e sobre o limite, lugar e pensamento que tendem assim a um inevitável fora de cena, a um radical impudor que é também afirmação de um "impoder". Se o lermos sobre o traço do tempo, na extremidade 'ad quem' do itinerário orgânico da sua escrita, como etapa seguinte de um trajeto de irrevogável corrupção e ruína, provavelmente - e num sentido estritamente demoníaco -, A Morte sem Mestre não poderia deixar de ser o que é: mais do que esse objeto estranho que chocou a crítica, um objeto desastroso, 'exemplum' perfeitamente imperfeito de uma espécie de corpo-desastre que se apresenta como postergação (calculada?) do fulgor poético, assumindo essa «tarefa da poesia prostituída» segundo António Guerreiro, colocando-a sob a presumível égide de Sade ou de Bataille.

Neste caso, o poeta dedicou-se a condensar fragmentos do mundo em movimento primitivo e, para tal, deu a sua própria vida à linguagem. Hoje, diz-se e diz-nos: "filhos não te são nada, carne da tua carne são os poemas/ que escreveste contra tudo, pais e filhos,/ lugar e tempo, […] filha é a palavra carregada que arrancas aos dicionários quando dormem,/ essa palavra escolheu-te e tu escolheste as roucas linhas/ onde hás de ter o trabalho artesanal da morte".

Agora, o poeta está nu, no final da vida como no começo do mundo (ou na poesia da juventude) e por isso pede "que um qualquer erro de ortografia ou sentido/ seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro». Mais irónica, livre, fulgurante e moderna do que nunca, a metapoesia de Herberto Helder é a confissão magnífica de quem «queria fechar-se inteiro num poema/ lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena».

A Morte Sem Mestre é uma elegia, um lamento confessional, alimentado pela mensagem fúnebre dos poemas antigos, "tão fortes eram que sobreviveram à língua morta" e ainda vibram "entre os objetos técnicos no apartamento,/ rádio, TV, telemóvel,/ relógios de pulso". O poeta continua a cantar o presente das coisas mesmas, ainda em busca de uma luz de dentro, iluminando e despedaçando tudo. O acaso, o hermético, o concreto uniram-se após décadas de experiência da palavra, garimpando poesia como "um organismo internamente coerente e bastante". O que espanta é o arrojo, a vitalidade furiosa e orgânica deste livro, escrito aos 83 anos do poeta, e na sua melhor forma.




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