«Suacelência minimizava-lhe os feitos dizendo: "Ora, esses colonos precisavam de um preto decorativo"»
Decorativo é a puta que o pariu.
Calma, Bartolomeu. Não vale a pena o alvoroço, o Administrador nem está aqui.
O que o gajo tem é inveja . . . Vou-lhe mostrar uma coisa, espere . . .
A custo, abre um gavetão no guarda-fatos. Um cheiro a naftalina se espalha quando ele retira uma bandeira verde às riscas brancas.
Suacelência pediu-me, de joelhos, esta bandeira.
De joelhos?
Pensava que era uma bandeira do Sporting.
E não é?
É da Companhia Colonial de Navegação. Do Sporting é ele, esse satanhoco do Administrador.
O Administrador fazia pouco das suas glórias marítimas. Quando Bartolomeu desembarcava do Infante D. Henrique, as pessoas olhavam-no como um herói que vencera horizontes. Não era por méritos próprios que o mecânico negro seguia no navio. Ele era tripulante apenas como instrumento de uma mentira: de que não havia racismo no Império Lusitano. Suacelência sofria de inconfessável inveja de um passado que não lhe abrira nenhuma porta. Pois vivia um presente em que, apesar da farda, ele não era porteiro de nada.
Saudades do colonialismo coisa nenhuma! Eu tenho saudade é de mim mesmo, saudade de Deolinda, minha filha . . . Diga-me uma coisa: você nunca chegou a conhecer minha filha Deolinda?
Nunca! mentiu o médico
Sabe, Doutor: eu que sou pai nem sempre a conheci. Essa vida do barco fez de mim uma ave de migrações trocadas. Já não sabia se estava indo, se estava vindo.
O médico arruma o estetoscópio e os restantes apetrechos que nem chegou a usar. No limiar da porta, o velho mecânico interrompe-lhe a saída.
A propósito, Doutor, afinal eu pago ou me apago?
Não entendo.
Falo de pagamento das consultas, das suas visitas. A minha mulher diz que o senhor tem sido pago. Eu não sei de nada...
O médico se atrapalha, finge olhar o corredor que conduz para a saída. Parece que chove lá fora. Para ele pelo menos, o mundo vai-se convertendo numa aquosa tela.
Mia Couto - Venenos de Deus, Remédios do Diabo, 2008
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