segunda-feira, 1 de março de 2021

Do feminismo - de uma entrevista de Ana Sá Lopes do Público a Lígia Amâncio



O Dia Internacional da Mulher é celebrado anualmente no dia 8 de março, e esta entrevista a Lígia Amâncio é oportuna numa altura em que se fala mais do pós-feminismo do que da terceira vaga do movimento feminista. Lígia Amâncio é professora catedrática de psicologia social do ISCTE desde 2002. Estudou Psicologia e Ciências da Educação na Universidade de Paris VIII. A sua carreira de investigação marcou o início dos estudos de género em Portugal, tendo-se centrado no estudo dos processos de construção social do masculino e do feminino e das suas implicações para a discriminação baseada no género, com particular destaque para a integração das mulheres em profissões de visibilidade pública e qualificadas, como a política, a ciência e a medicina. Na administração pública foi Presidente da Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres de 1996 a 1998, delegada nacional no comité de gestão do programa de apoio às ciências sociais da Comissão Europeia de 1999 a 2004, membro do Conselho Consultivo Europeu para a Investigação (EURAB) (2001-2004), Vice-Presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2006-2012) e membro do Conselho de Ética para as Ciências da Vida (2009-2014). Atualmente é membro do Conselho de Curadores da A3ES. Está aposentada desde 2018 e em 2019 recebeu o título de professora emérita do ISCTE-IUL. Nesse mesmo ano foi lançado o livro de homenagem, disponível em acesso livre, Lígia Amâncio: o género como ação sobre o mundo, organizado por João Manuel de Oliveira e Conceição Nogueira.

Estamos a atravessar a chamada terceira onda do feminismo que começou no início da década de 1990. O feminismo da terceira onda visa desafiar ou evitar as definições essencialistas da feminilidade da segunda onda, que representava demais as experiências das mulheres brancas de classe média-alta. Mas a perceção é que as mulheres são de muitas cores, etnias, nacionalidades, religiões, e origens culturais. Uma interpretação pós-estruturalista do género e da sexualidade é central no caso do feminismo da terceira onda. Diversas feministas negras procuraram negociar um espaço dentro da esfera feminista. Ao contrário da posição unificada das feministas da segunda onda sobre as mulheres na pornografia, trabalho sexual e prostituição, as feministas da terceira onda são bastante ambíguas e divididas. É a crítica da linguagem binária (feminino/masculino). As feministas pós-estruturalistas veem esses binários como construções artificiais para manter o poder dos grupos dominantes. As mulheres é que definem o feminismo para si, inclusivamente rejeitando o epíteto feminista. A palavra feminista pode ser mal interpretada, atendendo à grande diversidade de género e toda a sua fluidez. Mas, Shira Tarrant, vai ao ponto de questionar a divisão do feminismo por ondas. Se o feminismo é um movimento global, então será mais um movimento contínuo do que por etapas. E levanta questões no que respeita às políticas em todo o mundo. Há quem defenda que o feminismo como ideologia está datado. Estaremos mais numa era "pós-feminista". Manon Tremblay chama-lhe a "corrente antifeminista do Ocidente", na peugada do que Amy Friedman chama de "fanatismo radical do feminismo da terceira onda". No essencial, pensam que a igualdade de género já foi alcançada através das duas primeiras ondas. O que a terceira onda fez foi levar as coisas longe demais, ao empurrar excessivamente o pêndulo para o lado das mulheres. Ao ponto de ganharem vantagens ao fazerem batota com a vitimização. E isso prejudicou o estado de equilíbrio daquela estrutura humana perene, pilar fundamental da sustentabilidade: a família nuclear. 




Os debates têm sido acalorados acerca das iniciativas de ação afirmativa, como é o caso da questão das quotas. Duvida-se que se esteja a deitar a igualdade de género pela porta das traseiras, ou seja, deitar fora o bebé com a água do banho. Tais sentimentos é o que as que se autoproclamam pós-feministas sentem com a terceira vaga feminista, que já ultrapassou a realidade da história quanto aos direitos das mulheres. As redes sociais deste século XXI têm desempenhado, neste aspeto, tudo aquilo que tem a ver com o descrédito das causas justas conquistadas na primeira e segunda vaga feminista, ao radicalizar certas posições que são inaceitáveis por parte da maioria das pessoas. Donna LaFromboise é conhecida por afirmar que a terceira onda do feminismo "perpetuou o mito do martírio feminino", afirmando que as feministas mantiveram tais ficções para garantir a sobrevivência do atualmente intitulado "patrulhamento da linguagem" (cancelled culture em língua inglesa). 

cultura do cancelamento é uma forma moderna de ostracismo, em que uma pessoa é expulsa de uma posição de influência ou fama devido a atitudes consideradas questionáveis - seja online ou no mundo real, ou em ambos. É uma espécie de "Inquisição pós-moderna", em que um indivíduo, se tiver notoriedade pública ainda melhor, ou uma celebridade, que manifestou uma opinião censurada pelo "politicamente correto", mesmo que tenha sido num passado bem longínquo. Eles são ostracizados e afastados por ex-amigos, seguidores, apoiantes e adversários, levando a um grave prejuízo na carreira do indivíduo cancelado. Em caso de celebridades, a sua base de fãs pode diminuir significativamente. A expressão "cultura de cancelamento" tem entrado no debate público sobre a liberdade de expressão e censura, sobretudo nos Estados Unidos da América.

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