domingo, 14 de março de 2021

A expressão dos afetos com vocabulário hipocorístico


Foi ao ouvir a canção (popular) dos caracóis de Amália Rodrigues, 1968 (são caracóis são caracolitos/ são os espanhóis são espanholitos), que me lembrei da forma como desde criança me habituei a ouvir e a tratar as pessoas da minha família. A bem dizer toda a gente da nossa terra se tratava assim, entre si, pelo diminutivo do nome próprio: Mariazinha, Tininha, Fernandinho, Tizinha, tia Miquinhas . . . E então nem se fala, quando nos momentos de alegria irrompíamos com diminutivos carinhosos, soltando toda a nossa felicidade espontânea, que no caso em apreço, não tem nada a ver com diminuição de tamanho. Na linguagem coloquial, as formas sintéticas dos diminutivos, tanto nos substantivos, como nos advérbios e adjetivos, são, na maioria das vezes, utilizadas não só como diminutivos, mas também para indicar as várias manifestações da nossa emotividade.

Consultando um Dicionário fico a saber que há um termo para isto: hipocorístico. Designa a utilização do diminutivo em nomes e palavras cujo processo linguístico semântico se destina a exprimir o nosso lado afetivo. Constituem processos hipocorísticos os diminutivos de nomes próprios, tais como: Aninhas ou Anita, Zé ou Zeca, Tó ou Toni. Mas também palavras de parentesco - por truncamento: vô ou bu, vó, ti, mana; ou por reduplicação silábica: mamã, papá, vovó. O uso frequente de hipocorísticos pode ser também um traço dialectal e sociolectal, sendo além disso típicos de um registo de língua familiar e informal.

Os termos hipocorísticos são um fenómeno linguístico universal em qualquer língua. Na língua inglesa: Dan de Daniel; Chris de Christopher; Dick de Richard; Steve de Stephen ou Steven. Na língua russa: Katya de Ekaterina; Dacha de Dária; Kólia de Nikolai; Vânia de Ivan; Nástikienka de Anastássia. E por aí fora. 

Em russo, familiares e amigos mais próximos costumam usar apelidos, como por exemplo Masha, Nastya, Pasha, Dima, que para contextualizar, em português seria algo como Mariazinha, Anastacinha, Pavelzinho, Dmitrinho. No entanto, ao nos dirigirmos formalmente a uma pessoa que não conhecemos, jamais devemos chamá-la pelo apelido ou sequer pelo nome apenas. Deve-se usar sempre a combinação nome + patronímico. Convém não confundir com os patronímicos. Por exemplo, Gorbachov faz parte da família Gorbach. E não é apenas o "ov" que indica a origem familiar. É comum encontrarmos sobrenomes masculinos terminando com "ov" ou "ev", assim como sobrenomes femininos terminando com "ova", "eva". Por exemplo, a tenista Maria Sharapova pertencente à família Sharap

Dois amigos encontram-se e um deles convida o amigo para conhecer a sua casinha (diminutivo afetivo, de aconchego). Quando o amigo chega em frente à casa, declara admirado: “Que casinha!” Na realidade, o amigo ficou admirado porque não era uma casinha, (no sentido de pequena), mas uma casa grande, um casarão. Entram na casa e o dono pergunta ao amigo:
“Vai um cafezinho?” E o amigo responde: “Não, obrigadinho . . . E o que me diz do escândalo desse doutorzinho da merda que mal chegou à nossa terrinha começou logo a cagar postas de pescada?" "Não faça caso, são boatos do nosso povinho, coitadinho . . . Ó amorzinho, amorzinho . . . chega aqui que te quero apresentar um grande amigo. O Amaro, esse, é inofensivo, não passa de mosquinha morta."
Existem diminutivos que, apesar de etimologicamente serem considerados diminutivos, atualmente perderam esse significado, pois adquiriram significados especiais, dissociados da palavra original. Não se pode mais, com rigor, falar de diminutivos, pois são, na verdade, eufemismos ou metáforas. Propaganda eleitoral impressa em formato pequeno, com a foto do candidato e informações sobre ele, tanto pode ser uma folhinha como um santinho (os santinhos que os padres davam às crianças na catequese). Vários amigos juntam-se para jogar forte no Euromilhões e fazem uma vaquinha.

E os diminutivos sensuais? Aquelas palavras afetuosas que se usam para designar o que é agradável, sensual ou excitante. "Ela estava toda nuinha!". "A sério? Nem ao menos uma cuequinha?". Calvin Klein, vem engarrafando o trânsito de Londres, devagarinho. Quando o diminutivo sugere alguma recomendação, isto é, dar a alguém alguma incumbência, alguma ordem, isto não indica mais lentidão ou ligeireza da realização do ato, mas sim acentuar a recomendação, reforçar o sentido: "Vá depressinha e não demore!". Embora os verbos não admitam flexão de grau, quando aparecem no diminutivo, eles são usados como um desvio gramatical, intencional, estilístico.

Na linguagem coloquial, onde as manifestações de ternura se caracterizam pela intensidade e natural exagero, é comum o advérbio e o adjetivo, por afinidade com os substantivos, assumirem uma forma diminutiva, utilizando os sufixo ‘inho’ com um valor superlativo. Os mais cínicos diriam que se o Zeca fosse um pouquinho mais sincero, estaríamos agora mais confiantes em relação à pandemia. Mas ele é igualzinho ao Nando, que foi cedinho para a cama. Ele com jeitinho lá vai levando a água ao moinho. Os diminutivos deverão ser sempre analisados dentro de um contexto, pois só assim se terá a noção exata do seu significado.

Um bicho pequeno é um bichinho; um gato pequeno, um gatinho; uma dor pequena, uma dorzinha. Ou seja, na língua portuguesa os diminutivos são expressos utilizando-se a própria palavra com a adição de um sufixo - inho(a) ou - zinho(a). No português, existem mais sufixos que exprimem essa mesma ideia de diminuição,  (z)ito(a) em lugar de - inho(a): rapazito, casita. Qual é o diminutivo de mosca? Mosquinha? Pode ser. E mosquito? Está bem, é outro inseto. Mosca é mosca, mosquito é mosquito. Mas de onde veio a palavra mosquito? Isso mesmo, veio de mosca + o sufixo diminutivo - ito. Agora vejamos o paliteiro. Retire um palito. De onde é que veio o objeto palito? Do paliteiro, claro. Mas estamos a falar de palavras. E a palavra 'palito', qual é a sua origem? Veio de pau (que no latim era escrito palu + a terminação diminutiva -ito.) Ou seja, palito nada mais é que um pauzinho.

O sufixo - iscar aparece na formação dos verbos com noção diminutiva: chuviscar, mordiscar, rabiscar (que na sua origem significa fazer pequenos rabos). O sufixo - isco aparece em vários substantivos: chuvisco (a chuva miúda); marisco (pequeno animal do mar). Asterisco, na sua origem, significa pequeno astro. Por isso, a palavra é 'asterisco' e não asterístico. Quem disser asterístico é como dizer chuvístico e marístico. Músculo veio do latim musculu, que inicialmente significava só ratinho e depois ganhou o sentido de músculo. A palavra latina foi formada de mus (rato) + a terminação diminutiva -culu. O músculo foi associado ao rato por causa de seus movimentos rápidos de contração e distensão. Do latim mus saiu o mouse. Testículo veio do latim testiculu, palavra formada de testis (testemunha) + a terminação diminutiva - culu. Quer dizer, testiculu foi formado para significar pequena testemunha. 

Na maioria dos casos, a noção de diminutivo perdeu-se e a palavra ganhou outro sentido, como no caso da costela (diminutivo de costa); ou goela (do latim gulella, diminutivo de gula, garganta); ou tabela (do latim tabella, diminutivo de tabula, tábua). Folheto, vareta, sineta, saleta, caneta (diminutivo de cana porque na sua origem o objeto era um estilete feito de uma cana aguçada na extremidade. A palavra cana veio do latim canna, cana, tubo. A palavra latina foi dar no italiano canna e recebeu uma terminação aumentativa para virar cannone, que é a origem da palavra canhão, em português.

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