segunda-feira, 15 de março de 2021

Tinha 8 anos de idade em 15 de março de 1961, mas lembro-me . . .




Lembro-me de ver durante vários dias, estávamos em 1961 e eu com 8 anos de idade, a minha avó e o meu pai junto do rádio, à noite à hora do jantar, muito apreensivos e atentos às notícias. E lembro-me de em 1963 me ter despedido do meu padrinho, militar de artilharia na altura capitão, todos em lágrimas porque partia no Infante Dom Henrique para a sua primeira comissão no Ultramar em Moçambique - Quartel General em Nampula, cenário de guerra em Mueda.

O regime, isolado internacionalmente, ia-se degradando quando a 15 de março de 1961 começava a guerra colonial. Os massacres da UPA (União dos Povos de Angola), depois FNLA, liderada por Holden Roberto, no Norte de Angola, apanhavam o governo e as chefias militares de surpresa. Apesar de, a 4 de Março, o adido militar da embaixada dos Estados Unidos ter avisado Lisboa de que o Governo norte-americano tinha informações de que a União dos Povos de Angola preparava ações violentas para chamar a atenção das Nações Unidas, onde se iria realizar um debate sobre o problema angolano, ninguém ligou. 

A 4 de fevereiro tinha acontecido o assalto à prisão de Luanda, seguido da revolta da Baixa do Cassanje contra a empresa luso-belga que dominava a cultura do algodão na zona, a Cotonang, numa gestão que até a PIDE considerava pejada de injustiças e que o Governo não ignorava. Cerca de 200 homens atacaram alvos na capital, sobretudo cadeias, com o objetivo de libertar presos políticos e obter algumas armas. A ação foi um fracasso e levou também à morte sete elementos das forças de segurança. No funeral que se seguiu, a violência voltou a explodir, com a população branca armada a disparar indiscriminadamente sobre os negros que assistiam à cerimónia.

Em Nambuangongo, e outras povoações e fazendas no Norte de Angola, homens com catanas na mão e outras armas rudimentares, invadiram e embrenharam-se numa matança que, segundo as contas de diferentes historiadores, terá vitimado entre 300 a 800 brancos e milhares de cidadãos negros, de etnias diferentes da dominante no seio da UPA, a bacongo. No documentário de Joaquim Furtado para a RTP A Guerra, uma mulher identificada como Deolinda de Castro, de olhar vazio, acabada de chegar a Luanda depois de sobreviver a esse dia, conta para a câmara de televisão como viu os atacantes chegarem à sua casa. “Eram bandidos que vinham para matar. UPA! UPA! Diziam todos ‘viva!’, com as catanas no ar. Havia umas seis armas, o resto [eram] catanas. O meu marido vinha a correr à frente deles e mataram-no no terraço.” Holden Roberto, líder da UPA, estava em Nova Iorque, a participar numa conferência da ONU em que se votava uma resolução sobre Angola, nesse dia. Em declarações a Joaquim Furtado justificou o facto de a sua organização não ter reivindicado, de imediato, os ataques de 15 de Março. “A maneira como o povo reagiu custou-me”, disse. E admitiu ainda: “Vi imagens que não me agradaram. Fomos ultrapassados com aqueles assassinatos em grande escala. Ficámos surpreendidos. Não é uma ação, foi uma reação. A reação do povo foi incontrolável.”

A 13 de Abril de 1961, fracassa o golpe do ministro da Defesa, general Botelho Moniz – que defendia a descolonização e tinha o apoio dos Estados Unidos e da administração Kennedy – para depor Salazar.  Adriano Moreira toma posse como novo ministro do Ultramar. O chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, general Beleza Ferraz, aliado de Botelho Moniz, também é substituído. Decapitado o topo da hierarquia militar, Salazar assume o cargo de ministro da Defesa e é então nessa noite que, em comunicação ao país através da rádio e da televisão, pronuncia a frase que ficou inscrita na memória coletiva como um slogan — “Para Angola rapidamente e em força” . . . “Se é precisa uma explicação para o facto de assumir a pasta da Defesa Nacional mesmo antes da remodelação do Governo que se verificará a seguir, a explicação pode concretizar-se numa palavra e essa é Angola. Andar rapidamente e em força é o objetivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão”.

António de Spínola que, 13 anos mais tarde, vai ter um papel fundamental no golpe do 25 de Abril e será o primeiro Presidente da República da democracia – o seu livro Portugal e o Futuro, de 1973, defende uma solução política, federativa, para acabar com a guerra – ainda está, em 1961, com Salazar. 
A 17 de Abril de 1961 partiram por avião quatro companhias de infantaria ligeira, os Caçadores Especiais. Outras se seguiriam por mar, sendo os militares recebidos como heróis à sua chegada à colónia em pé de guerra. A partir de Luanda eram enviados para o interior norte e leste, restaurando a autoridade portuguesa em zonas que alguns julgavam já perdidas, como Nambuangongo, em Agosto. A 20 de Abril de 1961, a Assembleia Geral das Nações Unidos aprova uma resolução contra a política colonial portuguesa por 73 votos a favor – incluindo o dos Estados Unidos – nove abstenções (Brasil, França, Inglaterra, Bélgica, entre outros) e dois votos contra – a Espanha de Franco e a África do Sul.

John Kennedy, é assassinado em novembro de 1963. Toda a pressão da administração americana para a mudança de regime falhara: os Estados Unidos, em plena guerra fria, precisavam da base militar dos Açores. Salazar tinha o trunfo Açores para jogar e jogou-o – diminuindo a pressão pró-independência das colónias africanas desencadeada pelos Estados Unidos. 
Quatro anos depois, em 1965, quando a guerra se tinha alastrado à Guiné e a Moçambique, Salazar profere o famoso discurso do “orgulhosamente sós”. Foi a 18 de Fevereiro de 1965, na tomada de posse da nova comissão executiva da União Nacional, o partido único do regime. 

Em 1961, os sinais de desagregação do regime já eram evidentes. Por isso, a sua capacidade de durar – com Salazar e depois com Marcelo Caetano – com frentes de batalha em vários países africanos é um fenómeno difícil de explicar. 
Em 1961, a chegada das imagens dos massacres do Norte de Angola a Portugal emocionou a população e levou, mesmo alguns opositores do regime, a proclamar o apoio a Salazar na luta pela manutenção das colónias. A chegada das imagens dos massacres do Norte de Angola a Portugal emocionou a população e levou, mesmo alguns opositores do regime, a proclamar o apoio a Salazar na luta pela manutenção das colónias. 

Mas a violência dos acontecimentos de 15 de Março, com ataques a povoações e fazendas de colonos no Norte do país, que deixaram mutilados e retalhados os corpos de homens, mulheres, crianças e bebés ainda dentro do berço, brancos e negros, tinha chocado toda a gente. Era o fim do mito de que o colonialismo português era diferente do belga, mais “benigno”, e que por isso não levaria a ações violentas por parte da população africana. Foi o ato que faltava para levar, finalmente, Salazar a agir e a enviar para o país os militares há muito reclamados pela administração colonial.

Para a grande maioria dos portugueses e, certamente, para quase todos os que viviam na então metrópole, a revolta dos camponeses da Baixa do Cassanje, e a repressão violenta que se seguiu, com a Força Aérea a arrasar 17 aldeias com recurso ao napalm (estima-se que o número de vítimas destas ações possa ter chegado às 10 mil), nunca acontecera. Ao contrário do que se passou com a violência do 15 de Março, em que os relatos e imagens dos corpos chacinados e mutilados à catanada de brancos e negros foram amplamente divulgadas na imprensa (e até junto da ONU, onde imagens ampliadas de bebés e mulheres mortas foram exibidas pelo representante português), os acontecimentos da Baixa do Cassanje tinham sido silenciados pela censura. 

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