terça-feira, 9 de março de 2021

O estado de consciência e a morte cerebral


António Damásio divide a consciência em dois tipos: consciência nuclear e consciência alargada. O conceito de consciência nuclear é neurobiológico, ou se se quiser, de clínica médica, quando o médico num Serviço de Urgência Hospitalar avalia o estado da pessoa que se apresenta à sua frente, por exemplo, no contexto de um acidente de viação, e se certifica qual é o grau do seu estado de consciência, que pode oscilar entre o coma profundo ou o estado de vigília orientada no espaço e no tempo. A consciência alargada já tem a ver com as memórias ligada à sua identidade pessoal e à memória dos acontecimentos mais recentes. Esta dimensão da consciência tem uma grande amplitude, desde o sistema que abriga expectativas, perspetivas, planos e qualquer registros mental em aberto como aquelas questões problemáticas e impulsionam o ser humano à busca de soluções. Essa amplitude de consciência permite observar questões do passado e investigar também um pouco do futuro. Alberga os conhecimentos e experiências que uma pessoa incorpora na existência. Todo os conhecimentos do passado e experimentações pela qual o ser atravessou na vida: uma antiga profissão que não se tem mais qualquer habilidade para exercer, guarda registros importantes que servirão como experiência em outras práticas. Qual dimensão processual, esse amplitude da consciência permite examinar o passado e avançar no futuro - tudo dentro de limites impostos pelo próprio desenvolvimento mental do indivíduo.

A consciência tem outros tipos de abordagem, que não vão ser desenvolvidas aqui e que tem sido objeto de trabalho mais por parte de filósofos da tradição anglo-saxónica, e menos por parte dos psicólogos: John Searle, Daniel Dennett e David Chalmers, são nomes bem conhecidos para além de muitos outros.

A morte cerebral é o estado de coma definido pela perda completa e irreversível das funções do telencéfalo/diencéfalo e do tronco. Definido por um protocolo específico de cada país regido por lei, que significa a morte da pessoa. O grande facto que suscitou os primeiros critérios e protocolos de morte cerebral foi o primeiro transplante cardíaco realizado por Christiaan Barnard em 5 de dezembro de 1967 na cidade do Cabo, África do Sul. Este acontecimento, por todas as implicações éticas vinculadas, principalmente a retirada do coração de uma doadora "viva", levou a Universidade de Harvard em Boston a constituir uma comissão multidisciplinar em 1968 composta não só por médicos, mas juristas, religiosos e filósofos, que definiu os primeiros critérios de coma irreversível, e instituiu um novo conceito de morte: morte cerebral.

Os processos causadores de coma devem ser separados em dois grandes grupos: metabólicos e estruturais. As lesões hemisféricas só provocam coma quando são extensas e bilaterais, como no traumatismo crânio-encefálico, na meningite, na encefalite ou nos acidentes vasculares cerebrais que tanto pode ser por enfarte, como por hemorragia. O grau de alteração da consciência é aproximadamente proporcional ao volume de tecido encefálico acometido no processo. Algumas teorias afirmam que é mais provável que lesões focais do hemisfério esquerdo causem alterações da consciência do que lesões do hemisfério direito, e alguns pesquisadores apontaram o hemisfério esquerdo como “dominante” para a consciência. Ainda assim, lesões focais restritas a um dos hemisférios raramente causam alterações relevantes da consciência.

Os processos metabólicos provocam coma por acometimento difuso dos hemisférios cerebrais, que deprimem a atividade no sistema reticular ascendente. As lesões focais e restritas do sistema reticular do tronco cerebral podem causar alterações profundas da consciência. É o nível de consciência que está em causa. Aqui, o conteúdo da consciência são todas as funções superiores do pensamento, memória, as conceções e perceções do eu-próprio e sentimentos específicos únicos do ser humano. É justamente o conteúdo da consciência que é progressivamente comprometido, como por exemplo nos casos de demência. Os níveis da consciência caminham desde um estado vigil de alerta, grau 15 da escala de Glasgow, passando por um estado obnubilado, torpor, sonolência, confusão, até ao coma de grau 3 de Glasgow. A escala de coma de Glasgow é uma escala quantitativa, padronizada a fim de padronizar a descrição do nível de consciência que está afetado. A literatura e a prática neurocirúrgica estão recheadas de casos onde ocorre uma lesão cerebral e este paciente evolui, em geral rapidamente, para um coma profundo. Na morte cerebral é condição essencial ter causa conhecida, e o seu retrocesso ser irreversível. Sendo assim, o apagamento da atividade cerebral significa o fim da existência do indivíduo, não havendo nada após isso.

É claro que não podemos confundir aqueles relatos de pessoas que estiveram em coma e que são conotados com a classificação de "Quase-Morte": um túnel iluminado e, às vezes, vendo-se a si mesmos fora do próprio corpo. Obviamente se essas pessoas o dizem, é porque estão vivas, não chegaram a morrer. Seja como for, e por estranho que pareça, estes relatos dividem as opiniões de especialistas. Segundo os defensores da visão dualista, a luz vivenciada pelos pacientes de quase-morte é a luz que indica o caminho para o mundo pós-morte. Mas são alterações químicas e funcionais no cérebro, que para os neurocirurgiões não é mistério nenhum, pois isso é frequente nas cirurgias de casos graves. Os avanços das técnicas de mapeamento cerebral e de mecanismos excitatórios cerebrais contribuíram significativamente para a compreensão da experiência de quase-morte.  Por exemplo, o estímulo direto dos lobos temporais pode induzir a sensação de uma presença invisível ou "divina". 

Um capacete construído pelo médico Michael Persinger e por ele denominado "capacete de Deus" induz experiências "espirituais" em 80% daqueles que o experimentam. Modificações induzidas no funcionamento dos lobos parietais simulam experiências extrassensoriais como a sensação de sair para fora do corpo. Em experiências realizadas em aceleradores centrípetos que visam a compreender as reações psicofisiológicas humanas em presença de enormes acelerações, após momentaneamente perderem a consciência por défice circulatório, as pessoas submetidas ao teste relatam, quase sempre, alucinações análogas às apresentadas pelas pessoas que passaram por experiências de quase-morte, incluindo a experiência de se ver fora do corpo, sendo certo que nestas experiências controladas as pessoas em testes sejam seguramente mantidas longe do limite entre a vida e a morte.

As "experiências de quase-morte" caracterizam-se, em sua quase totalidade, pelas seguintes perceções: sensações de tranquilidade - essas sensações podem incluir paz, aceitação da morte, conforto físico e emocional; luz radiante, pura e intensa - é uma luz que, muitas vezes, preenche o quarto. Em vários casos, o indivíduo associa-a ao Céu e a Deus; experiências fora do corpo - a pessoa sente que deixou seu corpo - em vários casos, o indivíduo afirma que vê o seu corpo, e descreve com certa precisão o ato dos médicos trabalhando nele. É claro que estas experiências são de tal forma marcantes que, nem é preciso que a pessoa seja um religioso muito crente para aderir às explicações de cariz religioso pelo seu caráter benevolente, ao ponto de até casos de neurocirurgiões que passaram por essas experiências terem passado a aderir às mais incríveis crenças religiosas, tal foi a intensidade da experiência por que passaram. Não nos admiremos, por conseguinte, que outras pessoas com um conhecimento científico menos robusto acreditem que há outras dimensões do mundo para além deste em que vivemos todos os dias, acreditando numa outra vida para além desta depois de morrermos. Nós enganamo-nos, mas não dava para andarmos enganados o tempo todo.

Esta questão remete-nos para o domínio de uma convicção religiosa de sobrevivência, que é perene e nos acompanha desde as brumas da memória. De um modo geral, todas as religiões, e em particular o cristianismo, concebem a Morte como uma passagem para o Além, onde os indivíduos serão recompensados pelo bem e julgados pelo mal que praticaram durante a vida. Assim, a Morte não é o ponto final da existência – um elemento sobrevive: a alma, a sombra (ou duplo) interiorizada, subjetivizada, elemento da essência dos fantasmas, espectral. Na Antiguidade greco-latina, era enviada em viagem, conduzida pelo barqueiro Caronte, pelo rio Estige, fronteira para o interior da terra, onde se encontrava o Hades, reino subterrâneo das sombras e cujo nome, para os Gregos, significava, além dos Infernos e do deus que os governava, "o invisível". 

A alma, núcleo imortal do indivíduo que aspira à salvação, sobrevive à ruína do corpo, à morte física, e eleva-se para uma região celeste, creem os cristãos, por exemplo, unindo à ideia de sobrevivência terrena a ideia de retribuição pela justiça divina, assumindo uma relação com um ser superior de cuja essência e valor dependem. Aliás, para os cristãos, existe a superação da morte pela ressurreição de Jesus Cristo, cuja ação destruidora daquela, através da sua própria morte, igualmente resgata e redime a humanidade do pecado original. Assim, os justos regressarão, glorificados pela ressurreição, à plena realidade existencial humana; ou seja, a morte existe, mas não é definitiva. 

Entenda-se, a substituição do sentimento de angústia perante a Morte como uma tentativa de suplantar ou diminuir o sofrimento. Uma esperança contra o naufrágio total, o desaparecimento no Nada. A ressurreição do corpo e a imortalidade da alma junta influxos do judaísmo e cristianismo com o helenismo e noções gregas como a imortalidade (prerrogativa exclusivamente divina), a incorruptibilidade e o destino da alma. A fé em Jesus não livra o fiel da morte física; através do baptismo, ele alcança uma "vida nova", prometida pela ressurreição – os baptizados têm a garantia da ressurreição e da salvação eterna. A morte física é absorvida pela fé na ressurreição, numa dicotomia que associa luz/vida e trevas/morte, introduzindo a possibilidade de um para além da morte, encontrando na fé religiosa a solução, na recusa da morte e consequente esperança da imortalidade, que não é mais que a afirmação da individualidade para além da morte.

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