domingo, 28 de março de 2021

A nossa mesada, e a conta da martelada





A única razão por que o investidor privado deseja adquirir bens públicos, que geralmente nunca dão lucro, e que doem tanto – ao contribuinte/utilizador/consumidor – por tanta ineficiência, é porque o Estado elimina, reduz ou poupa o investidor à sua exposição do risco. Em alguns casos, como por exemplo os CTT, o privado viria não apenas a ter prejuízos, como ainda por cima a derramar mais ineficiências do que a antiga gestão pública. Em suma, o fito dos privados é rapar lucros e cobrar os prejuízos ao Estado.

O resultado é o pior dos mundos possíveis para os cidadãos. Na saúde, a mania da privatização começou paulatinamente a operar desde os "tempos Thatcher" com as parcerias público privados, conhecidas pelo acrónimo PPP. É claro, no Reino Unido, onde estas coisas começam sempre mais cedo do que em Portugal, as PPP ruíram em 2007, mas os privados não deixaram de ir ter com o Estado para receber a conta.

Com a reprivatização da EDP, aquando do resgate financeiro dos anos da troika, o Estado português abdicou da golden share e fez um encaixe de 2,7 mil milhões de euros. E a EDP adquiriu uma posição maioritária na estrutura acionista, e como tal, assumiu o controlo da empresa. Agora a EDP vende 6 barragens das 27 que comprou, digamos que pelo mesmo preço, a um consorcio de investidores com a Engie à cabeça, por 2,2 mil milhões de euros. E muita gente fica perplexa com este tipo de negócios, ou seja, estima-se que essas 6 barragens ficaram à EDP por um preço, e vendeu-as por um valor cerca de dez vezes mais. Há negócios que não se explicam. Mas, ainda não satisfeita, a EDP engendrou uma manobra jurídica para isentar o negócio do imposto de selo no valor de cento e tal milhões de euros. 

Quando o descalabro sucede em série, como é o caso das companhias de aviação por causa da pandemia, o efeito é a renacionalização insidiosa, de facto, sem nenhuma das vantagens do controlo público como é o caso da TAP. É certo que em Portugal as coisas na Saúde não chegaram a esse ponto, ainda que no início do governo da Geringonça, as PPP de gestão privada que havia de alguns hospitais começaram a ser revertidas "a tempo" para as mãos do Estado. E agora com a Pandemia, o golpe de misericórdia dado às PPP foi definitivo, com a unânime reabilitação laudatória do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Não se pode deixar que companhias de eletricidade ou redes de controlo de tráfego aéreo parem devido a má gestão ou incompetência financeira. E é claro que os gestores sabem disso. Dado que nunca seria permitido a serviços nacionais, que são vitais, desintegrarem-se. Os privados podem correr riscos à vontade, desbaratar recursos, ou apropriar-se indevidamente deles, porque sabem que o governo acaba sempre por pagar a conta com o dinheiro dos contribuintes.

Estas coisas são de tal modo pornográficas, do ponto de vista da relação da lei com a moral na política, que às vezes precisamos de umas anedotas para desanuviar a mente, e não começarmos a partir tudo. E a história do "vender por dez vezes mais do que comprou" traz-me à memória um conto daqueles do meu tempo de rapaz. E o conto que vou contar tem a ver com "mesada"“martelada”. No tempo em que o processo iniciático da performance sexual dos rapazes se fazia em lupanares guardados por veneráveis senhoras de meia-idade.
Quando eu contei esta cena ao meu amigo, ele não fez nenhum comentário. O comentário foi trocado por uma anedota a propósito. Um rapaz como nós, a estudar em Coimbra, recebia a mesada por vales dos CTT, e mantinha correspondência com o pai por carta, dando-lhe conta das despesas numa lista, dado que só ia a casa nas férias do Natal, da Páscoa e férias grandes. Numa das cartas ele apresentou um item com o nome de "martelada", mas uma martelada muito cara. O pai não se fez de desentendido, e na volta do correio enviou-lhe um vale no valor que ele pedia, mas recomendava-lhe que procurasse uma "martelada" mais barata. No mês seguinte, o pai recebe uma lista com mais um item a seguir ao item da martelada, num valor baratinho. Era o conserto do martelo, num valor dez vezes superior ao da martelada.

Nesse tempo, era quando se saía de casa para estudar, Coimbra era o arquétipo, que se começava a receber uma mesada e a ter que a gerir da melhor maneira sem entrar em conflito com o pai por causa dos desmandos. "Cuidado com as dívidas!" Era o sacrossanto slogan. É claro que os primeiros tempos eram muito tortuosos, dado que com dezasseis anos de idade, completamente à solta, e com chave de casa no bolso, entrando às horas que se quer, exigia muita acrobacia num roteiro iniciático cheio de alçapões e ratoeiras, numa partilha de quartos em casas com o nome de repúblicas, comida fraca, cachorros-quentes e sandes de chouriça de lata em azeite, entremeadas com umas tacadas de snooker.

Até que chegava o dia de saber como era o ambiente na rua dos lupanares. Tempos de manobras sui generis, da rata e da gata, entre meretrizes, polícias e juízes. E nada mais. E um dia, armados em sabichões, a fazer de cicerones a uns fulanos lá da terra, adultos já feitos, ou a casar dali a dias. A ensinar-lhes as táticas da penetração na casa onde estavam as melhores. Mas eles naquela altura, nada! Depois, nas férias, antes de mais nada confrontavam-se com os pais a chamarem-nos ao quarto escuro, e a falar de uns zunzuns chegados aos ouvidos, estás a perceber . . .

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