Alberto Manguel, escritor e ensaísta argentino, que se mudou para Lisboa trazendo consigo a sua biblioteca para a doar com a criação do Centro de Estudos de História da Leitura, escreve no seu último texto publicado no Expresso, com o título "Aquiles e a tartaruga lusitana":
Evitar a ironia, sentir-se orgulhosamente pequeno e agir com deliberado comedimento são qualidades raras e (para um estrangeiro) desconcertantes. A burocracia, que em quase todos os países é somente pretexto para subornos e privilégios, em Portugal não é mais do que uma corrida de obstáculos consentida, uma corrida muito lenta, mais acidentada do que veloz. As regras, quando conseguimos compreendê-las e respeitá-las, são feitas para atrasar o curso de uma ação, seja para obter um documento oficial, arranjar um carpinteiro que construa estantes ou, Deus nos ajude, desalfandegar algum artigo. Mesmo assim, as coisas acabam por acontecer, presumo que devido a um intrínseco sentido de honra, de obrigação sine die de se manter a palavra dada: decorridos vários meses, e depois de perdida a esperança, alguém simpático, sem pedir desculpas mas com um sorriso gentil, diz-nos que o documento está finalmente pronto, vemos as estantes nas paredes, o artigo da Alfândega é devolvido ao remetente ou, se as estrelas quiserem, chega por fim às nossas mãos, mais velho e (espero) mais sábio devido à experiência. Para tudo isto é preciso paciência. Se calhar, a paciente Griselda de Boccaccio e Chaucer era afinal portuguesa.
Pode parecer ironia mas não é, no mesmo dia em que leio o ensaio de Alberto Manguel, pela primeira vez a canção de Portugal para o Eurofestival da Canção é uma canção que não é cantada em português. Quem ganhou foram os The Black Mamba com a canção intitulada "Love Is On My Side".
Kierkegaard toda a sua vida se dedicou à ironia, e como tal, estudou Sócrates. Mas é uma ironia romântica, que se aguenta às interrogações de um Nietzsche. O Banquete e o Fédon mostram com consistência a ironia de Sócrates: o primeiro apresenta o filósofo em vida; o segundo, na morte. Será, então, que o Estado ateniense, com a condenação de Sócrates, cometeu uma injustiça de bradar aos céus? A multidão chorou. Como podia ter acontecido o que aconteceu, se Sócrates era um homem bom, honesto, em suma, um modelo de virtude e cosmopolitismo que foi vítima da inveja mais sórdida.
Sócrates não reconhecia os deuses do Estado. O demoníaco em Sócrates designava a sua relação totalmente negativa para com a ordem estabelecida no terreno religioso. E, todavia, sabemos hoje que foi ele o inventor da filosofia humanista, rompendo com o naturalismo dos que vieram a ser chamados pré-socráticos. Neste ponto, trata-se de uma reflexão fria, racional e prosaica sobre a natureza, conhecida dos atenienses, e que naquela época também tinha dado azo a que vários suspeitos de ateísmo tivessem sido exilados. Sócrates não se ocupava com tal estudo, e embora anteriormente se tivesse deixado influenciar por Anaxágoras, logo se libertou dessa influência. Facto que Platão refere em várias passagens, a troca da reflexão sobre a natureza pela reflexão sobre o homem.
Se Sócrates não reconhecia os deuses do Estado, daí não segue que ele fosse um ateu (negador de deus). Ao contrário, esta não-aceitação socrática dos deuses do Estado está essencialmente relacionada com todo o seu ponto de vista que, no domínio teórico, ele mesmo caracterizava como ignorância. A ignorância de Sócrates, com efeito, não era de maneira alguma uma ignorância empírica, muito pelo contrário, ele tinha lido tanto os poetas quanto os filósofos, tinha também muita experiência nas coisas da vida, de modo que no sentido empírico ele não era ignorante. Mas, por outro lado, era ignorante quanto à sabedoria de evitar a morte. Por este critério Sócrates não era sábio. Era ignorante quanto àquilo que está no fundamento de tudo: o eterno, o divino. A primeira coisa que ele predicava a respeito disso era que nada sabia.
Sobre o conceito de ironia, se e a ironia é uma determinação da subjetividade, então a subjetividade pela primeira vez se fez valer do seu direito de fazer parte da história universal. Aqui temos Sócrates, a ironia na sua aparição histórica. Quando, porém, a subjetividade se anunciou ao mundo, o antigo não desapareceu, como tudo se tivesse tornado novo. Teve de se criar uma segunda potência da subjetividade, ou seja, uma subjetividade da subjetividade, que significa reflexão da reflexão. Dado que tão frequentemente o conceito de ironia tenha recebido uma significação diversa, é por isso que é necessário esclarecê-la. As diferentes significações assumidas pelo conceito ao longo do tempo foi-se subordinando ao arbítrio da linguagem.
Se Sócrates não reconhecia os deuses do Estado, daí não segue que ele fosse um ateu (negador de deus). Ao contrário, esta não-aceitação socrática dos deuses do Estado está essencialmente relacionada com todo o seu ponto de vista que, no domínio teórico, ele mesmo caracterizava como ignorância. A ignorância de Sócrates, com efeito, não era de maneira alguma uma ignorância empírica, muito pelo contrário, ele tinha lido tanto os poetas quanto os filósofos, tinha também muita experiência nas coisas da vida, de modo que no sentido empírico ele não era ignorante. Mas, por outro lado, era ignorante quanto à sabedoria de evitar a morte. Por este critério Sócrates não era sábio. Era ignorante quanto àquilo que está no fundamento de tudo: o eterno, o divino. A primeira coisa que ele predicava a respeito disso era que nada sabia.
Sobre o conceito de ironia, se e a ironia é uma determinação da subjetividade, então a subjetividade pela primeira vez se fez valer do seu direito de fazer parte da história universal. Aqui temos Sócrates, a ironia na sua aparição histórica. Quando, porém, a subjetividade se anunciou ao mundo, o antigo não desapareceu, como tudo se tivesse tornado novo. Teve de se criar uma segunda potência da subjetividade, ou seja, uma subjetividade da subjetividade, que significa reflexão da reflexão. Dado que tão frequentemente o conceito de ironia tenha recebido uma significação diversa, é por isso que é necessário esclarecê-la. As diferentes significações assumidas pelo conceito ao longo do tempo foi-se subordinando ao arbítrio da linguagem.
Platão observou que todo o pensar é um falar. A verdade exige então a identidade; pois se eu tivesse o pensamento sem a palavra, não teria o pensamento, e se eu tivesse a palavra sem o pensamento, também não teria a palavra. Se eu olho depois para o sujeito falante, mais uma vez eu tenho uma determinação comum a toda a ironia, ou seja, o sujeito é de livre arbítrio, mas pela negativa. Quando ao falar, eu tomo consciência de que o que é dito por mim é a minha opinião; e que o enunciado é uma expressão adequada de minha opinião; então eu estou amarrado pelo enunciado. A linguagem irónica supera-se a si própria, na medida em que o orador pressupõe que os ouvintes o compreendem, em que aparência e essência se sobrepõem. Se o discurso irónico não é compreendido, isso não é culpa do falante, a não ser que ele se tenha ido meter com um cínico, seja ele amigo ou inimigo. Assim não pode haver seriedade, dizer num tom sério o que não é pensado seriamente. Quando se diz a brincar algo que se pensa a sério, é outra coisa.
Pessoa também explicou que uma das características essenciais do provincianismo português é, “na esfera mental superior, a incapacidade de ironia”. Este aspeto, escolhido por Pessoa há quase um século, parece-me ser verdadeiro ainda hoje. Se os portugueses fossem cultores do olhar irónico, encontrariam ampla matéria de estudo na sua confusa e tentacular burocracia! [...] É verdade que há lampejos de ironia em Eça de Queirós, Saramago, Gonçalo M. Tavares e Teresa Veiga. Mas não chegam para criar a atmosfera irónica dominante com que os leitores tantas vezes se deparam nas literaturas inglesa ou francesa. Talvez uma delicada cortesia, pelo menos a que se dirige a estrangeiros como eu e que insiste em tratar toda a gente por “Excelentíssimo”, impeça os portugueses de serem ironicamente ofensivos. A ironia não é cortês. Nunca conheci um português que falasse sobre a ironia do facto de o grande prato nacional — o bacalhau, preparado de 365 maneiras diferentes, uma para cada dia do ano — ter de ser importado da Terra Nova para depois ser salgado com sal de Aveiro. Nenhum dos meus amigos portugueses descortina a ironia de, numa sociedade declaradamente igualitária, ser possível morar na esquina do Poço dos Negros com a Travessa do Judeu. [Alberto Manguel] - Tradução de Madalena Alfaia
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