sexta-feira, 26 de março de 2021

O percurso multissecular do parecer: lifestyle e boutiques




Depois da divulgação de que Tory Burch estava a vender camisolas poveiras a 695 euros, duras críticas por centenas de pessoas não se fizeram esperar nas redes sociais. Ameaçada pelo município da Póvoa de Varzim, que lhe enviou uma carta dando conta da intenção de agir judicialmente, a estilista reagiu, esta quinta-feira à tarde, à avalanche de críticas por estar a vender camisolas poveiras como criação sua. A empresária assume o erro de ter referido a influência mexicana da peça, omitindo que ela é, na verdade, uma tradição dos pescadores da Póvoa de Varzim e, numa publicação no Twitter, diz estar já a trabalhar com o município para corrigir a situação e para valorizar o trabalho das artesãs que continuam a fazer estas camisolas. Pediu desculpa nas redes sociais. A câmara municipal confirmou o contacto.




Enquanto os indivíduos buscam antes de tudo parecer-se com seus contemporâneos e não mais com seus antepassados, os fluxos de imitação se desprendem dos grupos familiares e dos meios de origem. Ao invés dos determinismos fechados de corpos, de classes, de país, manifestam-se influências múltiplas, transversais, recíprocas. O terminal da moda assinala “o domínio livre e não entravado da imitação”.

O termo boutique e também designer, com algumas diferenças, remetem para bens e serviços que estão contendo algum elemento que se diz justificar um preço extremamente alto. Assim como no mercado de Belas-Artes se passou a usar a Arte em esquemas de lavandaria, algumas boutiques se especializaram em objetos feitos à mão, e outros produtos exclusivos a preços muito altos, tentando imitar o negócio da Arte.

Dentre as várias formas de nudez que a humanidade experimentou, deixemos a nudez como contingência da natureza, e falemos da nudez como realização do ideal do belo. Refiro-me aos gregos e romanos antigos, a nudez dos indígenas ou dos homens das cavernas nada tem a ver com esta nudez. Trata-se de uma solução da ordem da estética, com amplo lastro filosófico. Os jovens do sexo masculino andavam nus a maior parte do tempo - conforme podemos perceber ao analisar a estatuária e pintura grega - mas tinham sempre uma espécie de manto ou capa ao ombro, para solenidades cívicas ou para o interior das habitações. Com o helenismo, e a expansão das letras e das artes gregas por toda a bacia do Mediterrâneo, as várias culturas se mesclam ocasionando uma mudança nas formas de representação. No términus da forma sincrética helenística, começam a aparecer, pela primeira vez, mulheres representadas nuas, como é o caso da famosa Vénus de Milo.

Na Antiguidade Oriental as vestes passaram a ser usadas para diferenciação social: as diferentes castas na Índia usavam cores e padrões diferentes. Desta maneira, foram surgindo nas sociedades orientais várias formas de indumentária e ornamentos, para que as pessoas pudessem ser facilmente identificadas, em relação ao papel que desempenhavam. As grandes civilizações – Índia, China, Japão – desenvolveram estilos e modismos próprios, extremamente diferenciados, sendo que a principal inovação foi no campo das texturas, pelo uso da seda, e do tingimento.

No tempo do Império Bizantino, era proibida a nudez, e as roupas tornaram-se nitidamente mais amplas e mais longas, sendo que foram estas as vestimentas que deram origem aos hábitos dos monges e freiras; e às batinas dos padres. Dava-se valor, por exemplo, às roupas na cor roxa, chamada "púrpura", pois essa cor era derivada de um pigmento muito raro que só a nobreza tinha condições de adquirir.

Na Idade Média Ocidental as vestimentas passaram a ser produzidas artesanalmente, com fibras naturais e em cores cruas, tornando-se raras e exclusivas, apesar de extremamente básicas. A forma se assemelhava às bizantinas e a elite, formada pelos guerreiros e sacerdotes, se distinguia dos camponeses também através do vestuário, o qual era colorido (normalmente vermelho ou verde). As roupas eram confecionadas em casa, evoluindo das túnicas merovíngias (de comprimento até à altura dos joelhos, bordadas nas pontas e amarradas por cintos) até as ricas vestes da época carolíngia, com enfeites de brocado. Com o passar do tempo, os camponeses começaram a tingir tecidos em tom azul, pois este é facilmente conseguido através da ureia. Com o desenvolvimento das cidades e a reorganização da vida das cortes, a aproximação das pessoas na área urbana levou ao desejo de imitar. Enriquecidos pelo comércio, os burgueses passaram a copiar as roupas dos nobres. Ao tentarem variar as suas roupas, para diferenciar-se dos burgueses, os nobres inventavam algo novo e assim por diante.

Quando a influência dos ancestrais cede o passo para a submissão às sugestões dos inovadores, as eras do costume dão lugar às eras da moda. Enquanto nos séculos do costume se obedece às regras dos antepassados, nos séculos da moda imitam-se as novidades de fora e aquelas que nos cercam. A moda é uma lógica social independente dos conteúdos; todas as condutas, todas as instituições são suscetíveis de serem levadas pelo espírito da moda, pelo fascínio do novo e a atração dos modernos.

Certamente em matéria cultural e artística a nossa relação com o passado é mais complexa. Com efeito, em parte alguma as obras “clássicas” se veem desqualificadas; bem ao contrário, são admiradas e apreciadas no mais alto grau. Mas isso não é o que se passa na cultura de massa. Com o modernismo artístico e as vanguardas, as obras deixaram explicitamente de ligar-se ao passado; tratava-se de romper todos os laços com a tradição e de abrir a arte à empresa de rutura radical e de renovação permanente. A arte de vanguarda insurgiu-se contra o gosto do público e as normas do belo em nome de uma criação sem limites e do valor último da inovação. O desenvolvimento das vanguardas coincidiu cada vez mais com a preponderância da moda. A Arte viu desencadear-se a busca da originalidade e da novidade a qualquer preço, o boom da desconstrução, do conceptual e do minimalismo. Happening, não Arte, ações e performances, body-art, land-art. O excesso, o paradoxo, a gratuidade, o jogo ou o despropositado, o insólito. 

O fosso entre a criação da moda, e a criação artística, não cessa de reduzir-se. Enquanto os artistas não conseguem mais provocar escândalo, os desfiles de moda se tornam cada vez mais criativos. A Democratização da Arte e da Cultura, doravante, coloca no mesmo nível fashion e bela-arte. É o espetacular. A A
rte acampa, de preferência, no terreno do “efeito”, no “piscar de olhos”, no palco das combinações e recombinações lúdicas. Tudo pode voltar, todas as formas do museu imaginário podem ser exploradas e contribuir para desclassificar mais depressa o que está em evidência. A Arte entra no ciclo moda, nas oscilações do efémero, da novidade.




Gabriel de Tarde foi o primeiro estudioso a conseguir teorizar a moda para além das aparências frívolas, tendo-lhe dado uma dignidade conceptual especial. O primeiro a ter visto na moda uma forma geral de sociabilidade, a ter definido épocas e civilizações inteiras pelo próprio princípio da moda. Parte desse momento em que a moda não remete mais exclusivamente ao domínio das futilidades e designa uma lógica e uma temporalidade social de conjunto. No campo da filosofia social, Gabriel de Tarde desenvolveu uma teoria segundo a qual o processo da história social corresponde a um ciclo infinito onde a inovação se faz com base na imitação. Para este autor, os hábitos existem porque as invenções se sucedem e repetem por imitação. Tudo o que é criado é na verdade produto da imitação e é conforme à capacidade de aceitação da sociedade que envolve o criador. A moda é essencialmente uma forma de relação entre os seres, um laço social caracterizado pela imitação dos contemporâneos e pelo amor das novidades estrangeiras. A moda e o costume são as duas grandes formas de assimilação social das pessoas.

Gabriel de Tarde não chegou a apreender o elo consubstancial que une a moda às sociedades modernas. Em busca das leis universais da imitação e da sua marcha irreversível, Gabriel de Tarde não reconheceu que a moda tenha sido uma invenção do Ocidente moderno. A moda tem a ver com as fases transitórias e revolucionárias entre duas eras de costumes. A vida social é universal e necessariamente ritmada pela oscilação de fases tradicionalistas, onde grassa a imitação dos modelos antigos e autóctones, e de fases de moda, onde se manifestam vagas de imitação de novidades estrangeiras abalando o equilíbrio dos usos e costumes. Depois a moda volta a ser costume

Tal é a fórmula geral que resume o desenvolvimento total de uma civilização qualquer: a Grécia do século V a.C.; Florença no século XV; Paris no século XIX. É na Europa dos séculos XVIII e XIX, que a imitação-moda ganha sincronicamente todas as esferas da atividade social. O século XVIII inaugurou o reino da moda em grande escala, um período de imitação-moda notável que ultrapassa o clássico "meio dos trapinhos". É o império da moda a assinalar a imensa inversão da temporalidade social, consagrando a ditadura do presente sobre o passado, o advento de um espaço social apoiado no presente, o próprio 'tempo da moda'. Passou a ser a moda a ditar as regas, a governar os nossos hábitos e costumes. O passado deixa de ser o polo que ordena o detalhe de nossas ações, de nossos gostos, e até das nossas crenças. O legado ancestral já não estrutura mais, no essencial, os comportamentos e as opiniões. A moda está no comando porque o passado legislador não é mais regulador, mas sim o amor pelas novidades sem limites, ordenado pelos valores hedonistas. Legitimidade do bem-estar e dos gozos materiais, sexualidade livre e desculpabilizada, convite a viver mais, a satisfazer os desejos, a “aproveitar a vida”. A cultura hedonista a orientar os seres para o prazer do presente imediato. O espírito de tradição está coletivamente morto, é o presente que comanda a nossa relação com o passado. A era da tradição já terminou, sepultada pela era do individualismo. 

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