domingo, 25 de julho de 2021

Portugal e o mito de Ourique




Recebi a notícia da morte de Otelo Saraiva de Carvalho, no preciso momento em que acabava de escrever esta nota histórico/mítica acerca de um evento supostamente ocorrido na zona de Ourique em 1139, que simboliza a fundação mítica de um Reino, a Batalha de Ourique, em que as tropas lideradas por Afonso Henriques infligiram aos mouros uma derrota que tornou irreversível o rumo da história em direção à criação de um país que em 1974, no dia 25 de abril, seria libertado, de uma ditadura que havia durado uns longos 48 anos, por um grupo de capitães de entre os quais se salientou Otelo Saraiva de Carvalho como o principal estratega da que viria a ser conhecida por Revolução dos Cravos.

Feita esta evocação à memória de Otelo, prossigo então com a ligação da data de hoje a um acontecimento que ocorreu há 882 anos, e que para alguns historiadores assinala o nascimento de Portugal, não de jure, mas de facto. É pelo Tratado de Zamora, assinado a 5 de outubro de 1143, por Afonso Henriques e Afonso VII de Leão, dia que os monárquicos em Portugal costumam comemorar o nascimento de Portugal.

Quem eram os Portugueses? De onde vinham? O que queriam? Porque escolheram e elegeram o Príncipe Afonso Henriques rei de Portugal? O Condado Portucalense era a terra da Cale, do Porto na foz do Douro. E as terras do Condado Portucalense eram não só terras galegas, como constituíam a principal região da Galiza: Braga e a Foz do Douro, que juntava o ativo cristão e o ativo comercial e económico, os principais ativos geoestratégicos da Galiza, o centro nevrálgico das rotas de cabotagem entre os Mares do Norte e o Mar Mediterrâneo.

O dia 25 de julho é o dia de Santiago, o patrono da Galiza. Portugal não pode, no entanto, deixar de ser galego. Galiza e Portugal são duas palavras que querem dizer o mesmo: a terra da Cale e o porto da Cale, nome de origem celta, que significa baía, ancoradouro, e de onde derivaram, aliás, diversos vocábulos marítimos.

Afonso Henriques com 18 anos era o principal rosto da nobreza de Entre Douro e Minho, mas ainda assim estava longe de ser reconhecido como o rei dos Portugueses. Só o foi 11 anos depois, em Ourique. Até lá assinaria como Príncipe de Portugal. Em Ourique, Afonso Henriques foi eleito rei pelos seus pares, ao abrigo do Código Visigótico. A sua eleição como rei dos Portugueses não significou, muito longe disso, que não pretendesse o trono da Galiza e não desejasse que o seu reino fosse da Corunha ao Algarve. A Galiza do Norte, sempre condicionada pela Casa de Trastâmara, acabou por não acompanhar a aventura independentista do Entre Douro e Minho e acabou refém de Castela. E enquanto a língua galega se enriquecia a Sul do Minho, já sob o nome de português, a Norte do Minho acabou corrompida pelo castelhano num continuado, e por vezes violento, processo de desagregação linguístico-cultural do território que hoje é conhecido por Galiza.

A história de Portugal regista a batalha de Ourique em 25 de julho de 1139, dia de Santiago, um dos apóstolos que teria difundido a fé cristã na Península Ibérica. As vitórias de D. Afonso Henriques contra os mouros e as suas ambições políticas em formar um reino independente, carecia de fundamento e do respetivo reconhecimento. Nesse sentido haveria de mistificar a fundação do reino na criação divina. Havia que glorificar e engrandecer as escaramuças, contra o infiel, pela conquista territorial e a expansão da fé. Os mitos fundacionais são na maioria dos casos, senão em todos, uma espécie de mitologia em que o historiador adapta a verdade histórica de forma a inculcar uma determinada visão do passado, ficcionando-a e modelando-a ao serviço dos interesses ideológico-políticos tanto do passado como do presente. 

Segundo uma tradição lendária, no século IX, na Galiza, 
vivia no lugar de Solovio, no bosque Libredón, um eremita chamado Pelágio que observou durante várias noites consecutivas uns resplandeceres misteriosos sobre um montículo do bosque, como se fossem chuvas de estrelas. Muito impressionado pelas luzes, Pelágio decidiu apresentar-se a Teodomiro, então bispo da Iria Flávia, para lhe comunicar o que tinha visto. O bispo reuniu um pequeno séquito e dirigiu-se ao lugar onde também ele contemplou o fenómeno. Foi ali, entre a densa vegetação do bosque, que encontraram um sepulcro de pedra no qual repousavam três corpos, que seriam identificados como sendo de Santiago Maior e dos seus dois discípulos Teodoro e Atanásio. Foram de imediato veneradas sobre o qual viria a ser erguida a Catedral de Santiago de Compostela. Os árabes invadiram a Península em 711 e deixaram, aos ibéricos as Astúrias, onde mantiveram uma resistência à dominação árabe. Nesse período, fazia falta aos hispânicos uma figura que unificasse a luta contra o inimigo comum. As dificuldades no acesso aos tradicionais destinos de peregrinação cristã, Roma e Jerusalém, acabam por conduzir muitos peregrinos a Compostela.

A lenda do “Santiago-mata-mouros”, surgiu relacionado com a lendária batalha de Clavijo em 25 de julho de 844, dia de Santiago, onde um rei cristão, em grande desvantagem numérica, desbaratou e derrotou vários reis mouros. A documentação histórica referente a Clavijo é contestada, e tudo leva a crer que foi o Arcebispo de Toledo, Rodrigo Jiménez de Rada que terá forjado uma narrativa de traços míticos. A lenda conta que Ramiro I teve um sonho no qual o apóstolo Tiago teria garantido a sua presença no campo de batalha e assegurado a vitória. De acordo com essa lenda, no dia seguinte os exércitos de Ramiro I, encorajados pela presença do Apóstolo montado num cavalo branco, a lutar contra os seus adversários, decapitando os mouros e ajudando a vitória dos cristãos do rei Ramiro, onde em grande desvantagem numérica enfrentava as tropas muçulmanas.

É o mesmo da Batalha de Ourique, em 25 de julho de 1139, D. Afonso Henriques, em inferioridade numérica derrota vários reis muçulmanos, precisamente no dia de Santiago. Apesar de existirem vários documentos desde o século XII, que falam sobre a batalha, a menção ao aparecimento de cristo a D. Afonso Henriques só aparece no século XV, cerca de 300 anos depois da suposta batalha, possivelmente redigida por Fernão Lopes, cronista do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, em 1419, numa altura de guerras com Castela. Quando a fronteira do reino de Portugal em 1139 se situava no rio Mondego, era pouco plausível deslocar um exército desta natureza a cerca de quinhentos quilómetros em pleno território inimigo.

Seja como for, o escudo português, com as cinco quinas e as cinco chagas, e que está na bandeira, é uma alusão à Batalha de Ourique. Nestes casos, o brasão tem por missão captar o “valor simbólico” de um acontecimento histórico marcante. Por outro lado, nem sempre o facto histórico é tão evidente. Daí que os símbolos possam ter segundas e terceiras leituras que exprimem uma mensagem esotérica.

D. João III desconfiava da simbologia de Ourique, das lendas e dos Templários. Também não sentia a força ideológica do Culto do Espírito Santo desde D. Dinis. O corte das elites dirigentes - 
que vinha acontecendo paulatinamente desde D. Manuel I com o caso dos judeus - com as tradições, ritos, símbolos, enfim, com a mundivisão do Portugal Mítico, culminou na Inquisição e no golpe de 1580, que colocou Portugal durante 60 anos sob o manto dos Filipes de Castela. Em suma, os mitos foram recalcados para o inconsciente coletivo.

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