quinta-feira, 1 de julho de 2021

Ciência e construção social


Num artigo de hoje no Público, Susana Alexandra Barbosa tece considerações muito interessantes sob o título “Ciência em estado pós normal”, e começando por defini-lo: «
Um domínio científico está em estado pós-normal quando a incerteza é muito grande, há valores culturais em jogo, os riscos para a sociedade são elevados e as decisões a tomar urgentes. Com base nesta definição, a ciência do clima é um exemplo óbvio de uma ciência em estado pós-normal, e a pandemia de covid-19 evidenciou de forma marcante a situação de pós-normalidade em muitas outras áreas.


«A ciência moderna rege-se por princípios de imparcialidade e universalidade que são a base da sua inegável contribuição para o avanço do conhecimento e o desenvolvimento tecnológico. Apesar de a ciência não conseguir ser inteiramente objetiva, como atividade humana e cultural que é, está na sua matriz esforçar-se por sê-lo. O método científico promove mecanismos intrínsecos de autocorreção, e um facto científico não é entendido como uma verdade absoluta, mas antes como a explicação mais plausível de um determinado fenómeno. Como tal, pode (e deve!) ser substituído por uma explicação alternativa em face de novos dados e novos conhecimentos. Um facto não é científico, ainda que expresso por um cientista profissional, quando o método científico não é seguido, por exemplo quando uma explicação é escolhida apenas porque está de acordo com uma dada escola de pensamento. Apesar destes princípios estarem bem enraizados, a sua aplicação é posta à prova em condições pós-normais.
Em condições pós-normais, a ciência tende a inclinar-se para a política (ao simplificar conclusões e ignorar incertezas) e a política tende a inclinar-se para a ciência (ao justificar decisões com factos científicos tidos como verdades absolutas). Como “a César o que é de César . . .”, essa inclinação deve ser corrigida. A ciência deve manter-se no seu núcleo duro de competência, que é inevitavelmente limitado em termos do âmbito da realidade que descreve. E a política deve promover processos de decisão abertos e inclusivos, baseados em ciência, mas tendo em conta as suas incertezas e domínio específico.
Apesar do seu inquestionável sucesso e importância, o conhecimento científico é muito focado em domínios de especialização concretos, e como tal limitado, fornecendo apenas uma parte de todo o conhecimento que é necessário para lidar com problemas complexos como sejam as alterações climáticas. A definição de políticas públicas e a resposta a desafios societais deve por isso envolver não só cientistas, mas também especialistas de outras áreas, incluindo das ciências sociais, assim como stakeholders de diferentes domínios e setores da sociedade, respeitando as limitações e forças de cada um para um processo de decisão mais construtivo e democrático. O mesmo princípio será transponível para outras áreas, incluindo no caso da atual pandemia de covid-19.»

 



Susana Alexandra Barbosa graduada em Física/Matemática Aplicada (Astronomia) em 1998 seguida por um mestrado em métodos computacionais (FEUP, 2000) e um Doutorado em Engenharia de Levantamento (UP, 2006) [Tese: Mudança do nível do mar no Atlântico Norte a partir de medidores de maré e altimetria por satélite]. Foi pós-doutorada de 2006 a 2009, trabalhando na mudança do nível do mar e na altimetria por satélite no Centro Espacial Nacional Dinamarquês (2006/7. De 2009 a 2015 trabalhou na Universidade de Lisboa. Desde 2015 é pesquisadora sénior contratada pelo INESC TEC, trabalhando na interface de ciência de dados, observação da terra e robótica. Susana Barbosa editou um livro sobre "Análise não linear da Série Temporal nas Geociências - Aplicações em Climatologia, Geodinâmica e Física Solar-Terrestre. Na categoria Engenharias, Susana Barbosa assume que sempre teve “um fascínio por tudo o que fosse relacionado com planetas - o clima, os oceanos, os vulcões . . .”. A colaborar com o Centro de Sistemas de Informação e Computação Gráfica (CSIG) e o Centro de Robótica e Sistemas Autónomos (CRAS) do INESC TEC, dedica-se atualmente à recolha e análise de dados para compreender as interações entre o espaço e a Terra, e a sua influência no clima do nosso planeta.
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O discurso sobre a 'construção social' não se aplica cientemente aos factos estudados pelas ciências naturais. O que está em causa não é se a ciência é ou não uma atividade social. A ciência é levada a cabo coletivamente por seres humanos munidos de valores, necessidades, interesses e preconceitos. E estes podem influenciar o seu comportamento de várias maneiras potencialmente profundas: podem determinar as questões pelas quais as pessoas mostram interesse, e em estratégias de pesquisa nas quais depositam as suas esperanças. Mas nada disto importa para a credibilidade de uma afirmação particular produzida pela ciência, caso essa afirmação seja adequadamente apoiada por indícios factuais. Kepler pode ter-se interessado pelo movimento planetário em resultado das suas preocupações religiosas e místicas. Mas desde que a afirmação a que por fim chegou, de que os planetas se movem em órbitas elípticas, pudesse ser justificada pelos indícios que apresentou em seu favor, não importa como veio a se interessar pela questão, nem que interesses o poderiam ter inicialmente motivado. A única maneira que teríamos de a rejeitar, caso fosse esse o caso, seria através da incidência sobre os factos que ele aduziu a seu favor.

É comum distinguirmos entre aquilo a que os filósofos da ciência chamam “contexto da descoberta” e aquilo a que chamam “contexto da justificação”. Apesar de ser plausível que os valores sociais desempenhem um certo papel no contexto da descoberta, não é plausível que desempenhem um papel no contexto da justificação. Enquanto os valores sociais podem entrar no primeiro contexto, não precisam entrar no segundo. Como poderiam os valores sociais entrar no contexto da justificação? Na leitura mais caridosa que podemos fazer, a perspetiva dos praticantes do que veio a ser conhecido como “estudos sociais da ciência” tem origem numa confusão inócua acerca do que é exigido pelo projeto de dar ao conhecimento científico um tratamento sociológico. Quando acreditamos em algo, acreditamos porque pensamos haver boas razões para pensar que isso é verdadeiro, razões que pensamos serem suficientemente gerais para serem aceites inclusivamente por quem não partilha a nossa perspetiva. É por isso que nos sentimos no direito de recomendá-la a essas pessoas. É difícil imaginar uma maneira de pensar acerca da crença e da asserção que excluísse a possibilidade deste tipo de generalidade.




Em contraste com o que acabei de afirmar, temos Dorothy Nelkin. 
Dorothy Wolfers Nelkin (Boston, 30 de julho de 1933 - Manhattan, 28 de maio de 2003) foi uma socióloga americana de ciência mais conhecida pelo seu trabalho de pesquisa sobre a triangulação entre -  ciência, tecnologia e público em geral. O seu trabalho frequentemente destacava as ramificações que os avanços científicos descontrolados e potenciais ameaças tinham para a privacidade e as liberdades civis. Foi autora ou coautora de 26 livros, incluindo Selling Science: How the Press Covers Science and Technology, The Molecular Gaze: Art in the Genetic Age, e Body Bazaar: The Market for Human Tissue in the Biotechnology Age. Nelkin atuou em conselhos governamentais e outros conselhos consultivos, como o National Center for Science Education; o Projeto Genoma Humano dos Estados Unidos; e a Sociedade de Estudos Sociais da Ciência. Nelkin também escreveu sobre ciência da criação e, em 1981, testemunhou para os queixosos em McLean v. Arkansas. Nelkin frequentemente se dirigiu à comunidade jurídica, aos líderes políticos e ao público em geral em questões relativas a estudos científicos, bioética e avaliação pública da ciência e tecnologia.

Como os construtivistas sociais se aperceberam muito bem, não daríamos a mesma importância à ciência se viéssemos a ser convencidos por conceções construtivistas acerca dela. Em que consiste a importância cultural da ciência? Esse é obviamente um tema vasto. Por um lado, reflete no que nos dispomos a ensinar às crianças nas escolas, ou no que aceitamos como indícios nos tribunais; e no que adotamos como base das nossas políticas sociais. Por outro, gastamos vastas quantias de dinheiro em pesquisas científicas fundamentais, pesquisas que não aparentam trazer qualquer contrapartida prática imediata. Há quem pergunte: "por que razão, dados os muitos problemas sociais que defrontamos, devemos gastar dezenas de biliões de dinheiro para construir aparelhos que nos levem a Marte?" O pensamento do construtivismo social põe a nu a contingência das nossas práticas sociais que erroneamente viemos a considerar como inevitáveis.

De onde vem o medo da ciência pura e dura por parte de certas feministas? Porquê tanto medo da 
objetividade e da verdade abstrata? Essas feministas meteram na cabeça que a ciência tem sido usada como instrumento contra elas. Argumentam: “a palavra objetividade é um enorme conto do vigário”. Se há algum tipo de objetividade a preservar, argumentam algumas delas, terá de ser com grande acolhimento de uma multiplicidade de pontos de vista. Ora, se alguma questão há aqui a precaver, certamente que não será a objetividade e a verdade abstrata serem ferramentas de opressão. No máximo o que se pode conceder é que houve ocasiões em que esses conceitos foram usados como instrumentos de opressão. Mas o facto de, por exemplo, a ciência ter sido maleficamente usada pelos nazis, não justifica que se culpe a própria ciência disso. Há um modo como as coisas são que é independente da opinião humana. Somos capazes de formar crenças objetivamente razoáveis, vinculativas para quem quer que seja capaz de ver os indícios relevantes, a despeito da sua perspetiva ideológica. Por mais difíceis que sejam essas noções, é um erro pensar que a filosofia pós-moderna tenha descoberto quaisquer boas razões para rejeitar a ciência.

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