sábado, 10 de julho de 2021

Tolerar e não ofender






O conceito de tolerar, aqui, é o de tolerar humanamente, não é um tolerar epistémico. Há que ter em conta esta diferença porque, do ponto de vista epistémico, não é tolerável a tese de que a covid-19 é uma invenção de conspiradores. Ou que a vacina contra o vírus da covid-19 não tem efeitos benéficos, mas um aproveitamento de Bill Gates para nos meter no corpo chips para nos vigiar. O que temos de fazer a toda a hora é desmentir as suas tolices com argumentos válidos e o mais cientificamente possível. Ser tolerante é não fazer mal às pessoas que têm ideias falsas, idiotas ou inaceitáveis, mas apenas atacar essas ideias. Não é atacar essas pessoas para não nos darmos ao incómodo de provar que as suas ideias são falsas. E, se essas pessoas disserem coisas que no limite nos ofendam, ou ofendam valores que no limite se transformem em crimes contra a humanidade, podemos levar essas pessoas a tribunal para serem julgadas por quem legitimamente está mandatada para o fazer: ou num Estado de Direito; ou ao abrigo do Tribunal Penal Internacional, que é por exemplo, onde pode ser levado Viktor Órban, se as suas leis ferirem a Carta Internacional dos Direitos Humanos. Não é possível garantir a liberdade de expressão se ao mesmo tempo amordaçarmos pessoas para não ofenderem outras pessoas.

Hoje deparamo-nos com as ofensivas da extrema-direita que começaram por germinar à volta do famigerado tema do “politicamente correto” imputado às apelidadas ideias fraturantes dos últimos anos assentes na política identitária centrada no abandono das questões sociais a favor de lutas de género, de raça, de orientação sexual, que, pelos seus exageros, tem sido um maná para esta direita radical. 

Não se pode confundir tolerância com a falsa tolerância. A tolerância pressupõe a convicção do erro. A falsa tolerância abre as portas ao fanatismo, cada vez mais presente na sociedade contemporânea. O fanatismo consiste em usar sistematicamente a noção de ofensa para silenciar os outros. Assiste-se assim à imposição de um discurso falsamente 'politicamente correto', proibindo-se seja quem for de dizer seja o que for que possa ser ofensivo seja para quem for. Não se pode dizer que as crenças religiosas são basicamente tolices supersticiosas, porque isso é ofensivo. Não se pode fazer uma piada à moda dos Monthy Python. E docentes numa ou outra Universidade declaram-se ofendidos com as opiniões do Papa. E os estudantes encenam protestos mediáticos análogos aos protestos contra os cartoons que chocaram fundamentalistas islâmicos.





Sobre a lei anti-LGBTI, governo húngaro rejeita acusações e ataca “eurocratas”. Este problema com Hungria é antigo, mas agora atingiu um ponto de viragem. Irá Bruxelas tomar medidas para enfrentar Orbán? As denúncias sobre violações do Estado de Direito por parte do governo húngaro são feitas há vários anos, não só por instituições europeias como por organizações de defesa dos direitos humanos, embora as críticas ainda não se tenham traduzido em medidas concretas. Talvez por isso, o governo de Viktor Órban tenha achado que, à semelhança de leis controversas no passado, também desta vez seria possível aprovar uma lei que proíbe a "promoção da identidade de género" nas escolas, equiparando a homossexualidade à pornografia. Contudo, a reação entre os vários estados-membros emite críticas ao governo húngaro nunca antes vista. 

Mas, por outro lado, há também hoje mais mobilização para uma Marcha LGBT do que para uma manifestação contra os despedimentos. Este abandono das questões sociais, da preocupação com a pobreza e a desigualdade, com o mundo do trabalho, fragilizou o paradigma da governação do centro-esquerda português. Partido Socialista; Bloco de Esqueda; Partido Comunista - não coincidem nos seus pontos de vista quanto a estas questões fraturantes que envolve o Movimento LGBTIG+. É neste contexto que forças políticas liberais e iliberais, conotadas com a extrema-direita, criticam um certo 'historicismo' que reduz a História à exploração de género; à exploração colonial; ao racismo e escravatura. Quem não alinhar com o exibicionismo da nova moda futebolística de ajoelhar de punho erguido, é racista? Quem discordar da política de imigração descontrolada é xenófobo? Quem reagir à histeria do “#Metoo” é misógino? Quem questionar o conteúdo concreto da nova doutrina de género em programas escolares é homofóbico? E ainda podíamos estar aqui um bom bocado a elencar perguntas desse género.

Na tradição do chamado "relativismo epistémico", a tolerância é uma das noções mais difíceis de compreender. E esta confusão denuncia incapacidade ou até falta de vontade para aceitar a tolerância. Os filósofos da tradição analítica de língua inglesa atribuem essa confusão aos filósofos do outro lado do canal da Mancha, cognominados pensadores pós-modernistas. Ser tolerante é aceitar o direito de alguém - reivindicando o princípio da liberdade, de que a liberdade de expressão faz parte - afirmar que o politicamente correto é uma forma de censura ou de patrulhamento de linguagem. Por outro lado, se alguém afirmar que não há verdades científicas insofismáveis, devemos tolerar uma afirmação dessas, ainda que não seja verdade. É o caso dos pensadores pós-modernistas, que mesmo estando a ser cínicos ou hipócritas quando dizem que se sentem na necessidade de declarar que não há “verdades”, mas apenas “construções sociais da realidade”,  devemos tolerá-los, ainda que seja uma contradição na sua base de pensamento quando afirmam que todas as diferentes “construções” são igualmente aceitáveis. 

Se fosse assim, como defendem os pós-modernistas, o conceito de tolerância ficaria esvaziado, porque só faz sentido eu ser tolerante se o que o outro diz, apesar de não ser "verdade", ainda assim eu tolero-o. É uma contradição nos termos, um oxímoro, dizer que não há verdades, mas o que estou a dizer que não há verdades é verdadeiro. Não vale tudo. Mas limitamo-nos a tolerar.  Só podemos tolerar o que estamos convictos de que é um erro inaceitável, uma falsidade patente, um absurdo ofensivo. 


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