sexta-feira, 9 de julho de 2021

Rembrandt e Espinosa em Amsterdão


Vivia-se numa época em que a Holanda presenciava um grande crescimento económico protagonizado pela rica comunidade judaica, grande parte vinda da Península Ibérica, como foi o caso dos progenitores de Espinosa [1632-1677], pertencentes a uma família de Portugal. O bairro judaico não era certamente um gueto. Nestas ruas viviam e trabalhavam também muitos não judeus (durante algum tempo ali viveu Rembrandt [1606-1669], bem como outros conhecidos pintores. Rembrandt, desde 1632 que frequentava habitualmente Breedestrat, no bairro judaico, onde pouco tempo depois compraria a sua própria casa. Não consta que Rembrandt tenha retratado alguma vez Espinosa. Mas Rembrandt fez vários desenhos de Sefarditas e Asquenazes, como recolha de trabalhos preliminares para as suas pinturas bíblicas e históricas. Por outro lado, as cenas e personagens do Antigo Testamento, os próprios Sefarditas adoravam comprá-las. E é bem possível que Rembrandt se tenha cruzado com Espinosa, dado que Rembrandt terá visitado várias vezes a sinagoga na companhia de Menassés. Os judeus holandeses de origem portuguesa eram entusiásticos colecionadores de arte.

Espinosa - frequentou a Escola Judaica fundada em 1638, onde aprendeu hebraico e as suas primeiras lições filosóficas. Em 1656 foi acusado de ser blasfemador e ateu. Acabou por ser afastado da Sinagoga de Amsterdão e deserdado pela família. Depois de excomungado, Espinosa mudou o seu nome hebraico Baruch para o nome latino Benedictus. Em 1661, Espinosa saiu de Amsterdão e exilou-se na cidade costeira de Rijnsburg, supostamente em busca de sossego e afastamento da comunidade judaica da capital do país, para se dedicar exclusivamente ao polimento de lentes e aos seus estudos filosóficos.

Rembrandt tendo alcançado sucesso na juventude como um pintor de retratos, os seus últimos anos foram marcados por uma tragédia pessoal e dificuldades financeiras. No entanto, as suas gravuras e pinturas foram populares em toda a sua vida e a sua reputação como artista manteve-se elevada, e por vinte anos ele ensinou quase todos os importantes pintores holandeses. Os maiores triunfos criativos de Rembrandt são exemplificados especialmente nos retratos de seus contemporâneos, autorretratos e ilustrações de cenas da Bíblia. Seus autorretratos formam uma biografia singular e intimista, em que o artista fez uma introspeção sem vaidade e com a máxima sinceridade. Tanto na pintura como na gravura, ele expõe um conhecimento completo da iconografia clássica, que ele moldou para se adequar às exigências da sua própria experiência; assim, a representação de uma cena bíblica era baseada no seu conhecimento sobre o texto específico, na sua assimilação da composição clássica, e nas suas observações da população judaica de Amsterdão. Devido à sua empatia pela condição humana, ele foi "um dos grandes profetas da civilização".

No final da década de 1640, Rembrandt deu início a um relacionamento com Hendrickje Stoffels, sua empregada. Em 1654 tiveram uma filha - Cornelia, o que levou 
Hendrickje a ser intimada pela Igreja Protestante Holandesa. Naquele tempo, aquilo que ela fez com Rembrandt, era tido como um ato de prostituição. Confessou a verdade e foi excomungada. Rembrandt, por sua vez, não foi convocado nem excomungado. Também não havia como o fazer, pois não estava engajado em nenhuma igreja. Para todos os efeitos, eram vistos como estando legalmente casados sob a lei comum. Mas Rembrandt tinha as suas razões, não se casara oficialmente para não perder acesso aos recursos financeiros, destinados ao filho Titus, do testamento de sua mãe.

Quando Cosme III de Médici, Grão-Duque da Toscana, viajou até Amsterdão em 1667, Rembrandt teve a surpresa da sua visita. O Grão-Duque Fernando encorajou Cosme a empreender uma viagem pela Europa para o distrair da renovada hostilidade de Margarida Luísa. Em 28 de Outubro de 1667 chegou ao Tirol, onde foi recebido por sua tia, Ana de Médici, Arquiduquesa da Áustria. E foi então daqui que viajou de embarcação pelo Reno até Amsterdão. Rembrandt sobreviveu tanto a Hendrickje, que morreu em 1663, como a Titus em 1668. Ele faleceu em Amsterdão em 1669, com 63 anos, um ano depois da morte do filho.

Espinosa m
orreu em 1677, em Haia, com 44 anoa de idade. Para sua subsistência ia polindo lentes, o que não deve ter sido bom para a sua saúde, porque os seus pulmões foram afetados com a pneumoconiose típica destas profissões. Começou a polir desde logo que passou a viver em casas de familiares em Outerdek (próximo de Amsterdão). E depois em Rijnsburg. Essa atividade deve ter sido a causa da sua recusa sistemática aos vários convites para prestigiosas posições de ensino. Em 1670 mudou-se para a cidade da Haia, e escreveu aí as suas principais obras que só viriam a ser publicadas mais tarde a título póstumo. Uma vez que as reações públicas ao seu Tratado Teológico-Político não lhe eram favoráveis, absteve-se de publicar. Naquela época isso era frequente, dado que os escritos dos autores malditos aos olhos das igrejas, eram proscritos, e iam parar ao Index. E depois de morto, já nada mais lhe poderia acontecer. Chegou a ser convidado a lecionar na Universidade de Heidelberg, mas recusou, alegando que teria de acatar as normas ideológicas da Universidade, e ele não estava para isso. Ele queria continuar com a sua obra de forma independente. E assim foi, a Ética, a sua obra Magna, foi publicada depois da sua morte, Opera Póstuma editada por seus amigos. 




Este é um dos quadros mais célebres de sempre. E não é por acaso que lhe cabe o local de maior destaque numa grande galeria de honra, a maior das salas do Rijksmuseum, em Amesterdão. É uma das mais celebradas criações de Rembrandt van Rijn. Conhecida como “A Ronda da Noite” concluída em 1642. Representa uma milícia comandada por Frans Bannick Cocq, o que está vestido na pintura de escuro, e que foi um autarca da cidade, ao lado de Willem van Ruytenburch, com um traje mais claro, um tenente, filho de um abastado mercador de especiarias. A eles juntam-se uma série de guardas, conhecidos como os “kloveniers”. O quadro, de grandes dimensões, e que terá levado cerca de três anos a ser pintado, estava inicialmente destinado às paredes da sala de banquetes do Kloveniersdoelen, uma nova sede para a milícia que então acabara de ser construída. Hoje é a casa que alberga o Hotel Doelen.

Em 1715 foi decidido mudar o quadro para a sede do município (edifício que mais tarde seria convertido no Palácio Real). E, dadas as dimensões mais reduzidas do espaço para onde o quadro foi mudado, foram cortadas dos quatro lados do quadro quatro finas tiras. As tiras retiradas nunca mais foram encontradas, e foi esta a versão “reduzida” que, durante a ocupação napoleónica, foi levada para uma mansão familiar e, depois, para as paredes do Rijksmuseum, onde agora, 306 anos depois de amputada, pode voltar a ver-se a pintura na sua plenitude original, fruto de um processo de reconstituição que contou com a ajuda de tecnologia de inteligência artificial.

Fruto de uma campanha de restauro que ficou conhecida como “Operação Ronda da Noite”, a recriação do que faltava ao quadro, permitiu que a pintura adquirisse a sua plenitude original. 
O site do Rijksmuseum permite uma detalhada observação virtual do quadro, assim como apresenta um vídeo que documenta o processo de restauro e reconstituição.




Nestas duas fotos podemos observar as diferenças: à esquerda como ficou em 1715, com os cortes; e à direita depois da reconstituição. O museu alerta para as diferenças. Surgem mais figuras, nomeadamente elementos da milícia e uma criança. O capacete do homem na direita da imagem está agora intacto. O novo jogo de distribuição espacial mostra o capitão Frans Banninck Cocq e o tenente Willem van Ruytenburch descentrados para a direita. E isto faz toda a diferença, recuperando o sentido de movimento e dinamismo. O aumento da área amplifica ainda a noção de espaço em volta do grupo, deixando ver todo o estandarte, o que torna as cores mais convincentes.

A reconstrução, ajudada por tecnologia de inteligência artificial, teve como principal elemento uma cópia do quadro original que foi executada, possivelmente por Gerrit Lundens, entre 1642 e 1650, e que hoje pertence à National Gallery, de Londres. Depois de estudadas as técnicas de Rembrandt e o seu uso da cor, a recriação das tiras em falta foi executada pelo computador.

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