quinta-feira, 8 de julho de 2021

Edgar Morin


Hoje volto a Edgar Morin, 
A Fisga: Resultados da pesquisa para Edgar Morin (ferndias.blogspot.com)

Porque hoje ele faz 100 anos ainda vivos. E Edgar Morin é aquele pensador do nosso tempo que nos avisou que a compreensão da Complexidade (com letra grande) é que nos podia ajudar. E que a simplificação só nos podia tramar, porque era o alimento dos demagogos e populistas. Quem decide no meio de uma pandemia? Os cientistas ou os políticos? Os epidemiologistas ou os psiquiatras? No meio desta confusão, é normal que estejamos desorientados.




Le Paradigme Perdu: la nature humaine, Le Seuil, 1973 – resultou da sua comunicação, depois ampliada, "The Lost Paradigm: Human Nature", proferida em setembro de 1972, no Centro Internacional de Estudos Bioantropológicos e Antropologia Fundamental (CIEBAF), que mais tarde se tornou o Centro Royaumont para a Ciência do Homem. Tratou-se de uma conferência internacional subordinada ao título "A Unidade do Homem", que Edgar Morin coorganizou com Jacques Monod e Massimo Piatelli-Palmarini.

Já em 1971, eu havia tido o privilégio de ir a Paris a pretexto da viagem de curso dos finalistas do Liceu Sá de Miranda em Braga. Em Paris ficamos no Hotel Vaugirard, nº 403 rue du Vaugirard, uma rua muito comprida e onde morava Michel Foucault no nº 285. 1971 também foi o ano do Festival de Vilar de Mouros onde atuou Elton John, tendo eu também tido o privilégio de assistir. Durante algum tempo nós tínhamos a vaidade de dizer: "eu também lá estive". Mas isto para dizer que o mundo nessa altura ainda nos parecia ser um mundo compreensível, em que tudo estava no seu lugar. Pelo menos era assim que eu pensava. Era compreensível, apesar de tremendamente injusto. Hoje temos muitíssima informação e dispomos de mais meios. Mas as injustiças, a pobreza e a miséria continuam e não param de aumentar. Hoje parece que há tudo, e de tudo, e em abundância. Mas essa abundância produz em nós uma desproporção que a torna difícil de digerir. Não nos falta informação, falta-nos orientação. E, todavia, vemos mais pessoas a perguntar qual é a fiabilidade da ciência. Isto porque ao fim de ano e meio de pandemia as pessoas estão cada vez mais confusas e irritadas. E cada vez me convenço mais de que o problema na comunicação, de que tanto se queixam os jornalistas, está mais no tipo de perguntas que eles fazem, do que nas respostas. As respostas poderiam ser mais compreensíveis e esclarecedoras se as perguntas não pecassem por ser logo à partida erradas, umas vezes por ignorância, mas noutras vezes parece ser de má-fé. 

Natureza e Cultura são inseparáveis ​​uma da outra, cada uma produzindo a outra num entrelaçamento recursivo permanente. Foram reunidos biólogos, antropólogos, sociólogos, matemáticos, cibernéticos com o objetivo de aproximar os pontos de vista, as oposições e as opções fundamentais das especialidades e as suas epistemologias. As crises agravam as incertezas, favorecem os questionamentos; podem estimular a busca de novas soluções e também provocar reações patológicas, como a escolha de um bode expiatório. São, portanto, profundamente ambivalentes. Para entender o que acontece e o que vai acontecer no mundo, é preciso ser sensível à ambiguidade. O que é a ambiguidade? Ela se traduz pelo facto de que uma realidade, pessoa ou sociedade se apresenta sob o aspeto de duas verdades diferentes ou contrárias, ou então apresenta duas faces, não se sabendo qual é a verdadeira. Tomemos o exemplo dos Estados Unidos: podemos ver neles a imagem da democracia, de um anteparo contra a ditadura, mas também do imperialismo, do intervencionismo no Iraque, do massacre das populações indígenas. Eles apresentam, portanto, esses dois rostos, e talvez um deles seja mais marcante que o outro em determinados momentos da sua história. 

Edgar Morin é um profundo admirador dos Pensamentos de Pascal, porque tem o sentido da ambiguidade. Para ele, o ser humano traz em si o melhor e o pior. Já Descartes, não aprecia tanto. A segunda coisa necessária para esse entendimento é a ambivalência: quando um processo apresenta dois aspetos de valores diferentes e às vezes contrários, é ambivalente. Tomemos um exemplo na história da Europa ocidental: a partir do século XVI, a Europa conquista o mundo, a África, a América, coloniza esses continentes e se mostra cruel, exterminadora, esclavagista. Simultaneamente, vale dizer, exatamente na época em que ela exerce a sua crueldade nessas regiões do mundo, a Europa também é o único lugar onde se desenvolveram as ideias que vieram a dar a Carta dos Direitos Humanos. Outra contradição foi a Revolução Francesa, com a aplicação à letra das teorias iluministas da Fraternidade Universal e da Liberdade. 

Essa Europa, portanto, é ao mesmo tempo cruel e civilizada, dupla face de que dão testemunho, à sua maneira, dois grandes espíritos da época, o primeiro, por seu combate, o segundo, por seus escritos: Bartolomé de Las Casas, católico (de origem judaica), obriga a Igreja a reconhecer que os indígenas têm alma; Montaigne (cuja família paterna era marrana, donde sua experiência da diferença) exclama: “São chamadas bárbaras as pessoas de uma outra civilização. E nós somos mais ferozes que os canibais que comem os inimigos mortos, considerando que o que fazemos é torturar pessoas vivas.” Em sua face positiva, portanto, a Europa oferece uma mensagem de compreensão dos outros, do humanismo cristão que nasce da confluência do evangelismo com as ideias gregas. Embora nos primeiros séculos esse aspeto fosse muito secundário, a Europa transformou-se em defensora dos valores de Liberdade. A ambivalência é assim integrada a um processo, como qualquer valor, podendo tornar-se mais ou menos importante.

Tomemos ainda como exemplo o processo de globalização, favorecido pela técnica e pelo desenvolvimento das comunicações, como a Internet e o telemóvel. A implosão da União Soviética e a explosão da China. Esse duplo fenómeno levou ao sequestro da política pela economia. Os Estados Unidos, por sua vez, agravou a sua tendência imperialista com um período de transição unipolar. E assim a Globalização gerou as suas próprias ambivalências: criação de novas zonas de prosperidade, de novas classes médias na Índia, na China, no Brasil, mas também de novas zonas de miséria. A esse respeito, devemos estabelecer uma diferença entre a pobreza e a miséria: uma família que vive num pequeno lote de terra com policultura e animais de criação é pobre mas tem um mínimo de dignidade e autonomia, ao passo que as pessoas tiradas do campo para serem atiradas para bairros de guetos numa dependência absoluta. Podemos discutir longamente as vantagens e desvantagens dessa globalização, mas é a miséria que domina. A
 política, na sua forma atual, não é adequada ao mundo contemporâneo. E os avanços tecnológicos são de tal modo avassaladores que estão a colocar em perigo a própria Democracia. Cada novo conhecimento desencaixa o já existente, gerando novas incertezas. Cada tecnologia instaura um nível de segurança suplementar, gera um vazio normativo e novos medos existenciais. Agora estamos na fase de perceber como será o momento posterior à digitalização veloz a que assistimos. Sendo a democracia autodeterminação e governo do povo, o que se passa quando se alargam os sistemas automáticos de decisão? Cada vez há mais coisas decididas por um algoritmo. Isso proporciona oportunidades, mas cria novos riscos dentro do núcleo normativo da Democracia.

A Complexidade tem a ver com elementos que estão densamente inter-relacionados. Que não tem nada a ver com "complicação", que é um conjunto de elementos amontoados. Uma pandemia é uma coisa complicada, mas uma família confinada é uma coisa complexa. Pensar a realidade, a sociedade e as instituições sob uma lógica de complexidade significa olharmos para o modo como as pessoas ou os elementos do sistema interagem. 
A expressão ‘achatar a curva’, no contexto da análise da pandemia, é uma aquisição do pensamento complexo, que percebe que há certas coisas que são inevitáveis mas que o relevante é conseguir que não interajam de forma dramática. Por outro lado, surgiu com força a ideia de que os problemas têm uma natureza cosmopolita, porque requerem estratégias partilhadas e cooperação e porque o que se está a passar nos afeta a todos.

Mas a nossa tendência, e os média, é ver as coisas de forma simplista. As oposições e a chamada "opinião pública" culpa o governo. E o governo culpa os comportamentos individuais no agravamento da transmissão da infeção. E no meio disto, esqueceram-se de que havia uma economia interdependente, com uma governança vinda de fora, com uma medição dos riscos ao nível do global. De qualquer modo a Europa demorou menos a pôr em cima da mesa estratégias partilhadas e fundos à disposição de todos do que na crise financeira anterior.

Se as ciências sociais já estavam em crise há muito tempo, esta pandemia veio pregar mais alguns pregos no seu caixão. Para problemas como este, de uma pandemia à escala planetária, os instrumentos das ciências sociais são demasiado estáticos. Nos últimos anos têm sido as ciências matemáticas (para a inteligência artificial), e as ciências da natureza (para a catástrofe climática) que conseguiram contribuir para novos paradigmas de pensamento com alguma capacidade de resposta para a mitigação dos problemas. Veja-se o exemplo das vacinas. E ate neste caso, se tem havido empatas, eles provêm das franjas populistas das ciências sociais, como é o exemplo dos negacionistas, e dos desejosos de apocalipses.

As ciências da natureza, sobretudo a biologia e a conceção dos ecossistemas, têm uma ideia da realidade mais rica com conceitos mais fecundos como o de ‘emergência’ ou de ‘causalidade não linear’, elaborados num quadro de relações dos humanos com o seu ambiente muito mais denso e interativo do que a velha conceção da política. Quando os grandes teóricos da modernidade pensaram a política, viram-na como a saída do estado de natureza. Não era uma metáfora, mas a convicção de que a liberdade humana se exercia em contraste com as leis da natureza. Isto hoje não faz qualquer sentido. A crise ecológica revelou-nos que somos parte de uma totalidade e que devemos perceber-nos como seres nela inseridos. Os seres humanos têm uma grande capacidade de reagir aos perigos imediatos e visíveis. 
Porém, a crise climática, que é mais grave do que a da pandemia, mas é vista como distante e menos mortal, não nos leva a modificar o nosso comportamento, nem em termos de consumo individual nem daquilo que os Estados deveriam acordar entre si nas grandes cimeiras mundiais.

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