sexta-feira, 16 de julho de 2021

Filosofia ocidental – das duas escolas à pulverização




Qualquer leitor que tenha perseverado na leitura deste blogue terá sido surpreendido pelo facto de que todos os filósofos, mesmo os maiores filósofos, cometeram erros de pensamento. Isto é indicação do facto de a filosofia andar pelas ruas da amargura nos tempos que correm. Mas também, sem dúvida, devido à sua extrema dificuldade de ser pegada de caras (abusando aqui de uma metáfora tauromáquica portuguesa. Quando os forcados falham na pega de caras ao touro, recorrem a outra solução, a que chamam "pega de cernelha". Isto tem a ver com aquela ideia de que o difícil não está nas respostas, mas desde logo na formulação das perguntas. E a ambição da filosofia, para alcançar a tal 'verdade', é de encontrar as perguntas certas a serem feitas. Porque trata-se de um tipo de verdade que não é trivial, mas que transcende o que é meramente local e temporal. Nem mesmo o maior dos filósofos, e há mais do que um para os vários gostos, chegou perto de alcançar esse objetivo de um modo abrangente, de encontrar a pergunta que se tem de fazer a todas as perguntas. A tentação, que no passado era constante, para vencer essa dificuldade, por agora, desapareceu dos radares epistemológicos e metafísicos.

Começou a ser evidente, pelo menos desde os inícios dos anos de 1960, que tanto o marxismo, como a escolástica, deviam o seu lugar nas instituições académicas não à filosofia, mas a organizações cujos objetivos primários não eram filosóficos. Os anos 60 foram uma década de expansão, mas não para a escolástica. Muitos filósofos ocidentais viraram-se para Marx, apesar de as suas abordagens ditas marxistas se foram cada vez mais se afastando dos seus manuscritos e apontamentos. As suas obras, quer as obras do jovem Marx, quer o Capital, passaram a ser abordadas de forma cada vez mais desconcentrada. E é assim que os anos 70 marcam o início do cinismo e das teorias cínicas, que paradoxalmente, e parafraseando Peter Sloterdijk: " foi no leste, onde o marxismo era universalmente ensinado por obrigação. E foi no leste, quase universalmente, que o descrédito em Marx foi mais brutal. No leste, hoje em dia ninguém MAIS acreditava nele. Ao passo que foi no ocidente que o marxismo foi ensinado com grande fervor, ao ponto de hoje ainda ser muito amado nas escolas dos estudos culturais. Vá lá, ainda que seja uma minoria, a audiência de crentes apaixonados por Marx ainda se faz ouvir com grande barulho. 

Visitemos então os mundos filosóficos dos anos de 1960, considerada a melhor década do século XX para os filósofos de todos os quadrantes. No mundo de língua inglesa, chamemos-lhe assim, a filosofia não era um conjunto de doutrinas autoritárias, mas um método de pensar. No mundo de língua alemã a filosofia estava conectada a instituições cujo propósito primário era guardar as verdades filosóficas mais importantes de uma vez por todas, expondo-as, mas nunca colocá-las seriamente em questão. Interessavam as minúcias puramente teóricas, e os seus laços estreitos que mantinham com sistemas de lógica formal. No mundo da língua francesa dominava a corrente do Existencialismo de esquerda, que tinha orgulho no seu comprometimento político e desprezo pelos aspetos da lógica formal.

Estes blocos filosóficos começaram a desagregar-se, a abrir fendas, e a mudar. O segundo Concílio do Vaticano, inaugurado em 1962, conduziu a um período de liberalização na Igreja Católica Romana; no decurso disto, a nova escolástica perdeu grande parte do seu estatuto canónico nas instituições de ensino superior da Igreja, e por volta da década seguinte era provável que os professores de um seminário fossem tão versados no existencialismo como no tomismo. Mas, ao mesmo tempo, o existencialismo clássico de Kierkegaard a Nietzsche estava a perder o seu poder onde tinha antes dominado. Entretanto, a influência de Heidegger entrou em sério declínio, e o próprio Sartre, nas últimas décadas da sua vida, estava mais interessado no marxismo do que nos temas das suas anteriores batalhas contra o essencialismo.

Enquanto que nos anos 50 e 60 o Canal da Mancha tinha determinado uma barreira quase impenetrável entre a filosofia anglo-americana e a filosofia continental, por volta dos anos 70 começaram a aparecer muitas ligações de cruzamento cultural. A Alemanha, a Itália e (depois da morte de Franco) a Espanha, particularmente a região da Catalunha, tornaram-se recetivas aos métodos analíticos em filosofia, ao mesmo tempo que ideias filosóficas engendradas em França encontraram grande recetividade na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos da América, particularmente na região da Califórnia em Berkeley apesar de isto acontecer mais nos departamentos de literatura do que de filosofia. 

A Alemanha, por exemplo, nos finais dos anos 60, em algumas das principais universidades, dominava a filosofia analítica, na tradição de Frege, e a filosofia marxista (que tinha expoentes orais entre alguns dos mais enérgicos dirigentes estudantis). A escola de pensamento mais próxima do existencialismo alemão que conseguiu sobreviver foi a hermenêutica, que fez da natureza da compreensão o seu tema central de estudo; a natureza da compreensão em geral, especialmente a compreensão das obras literárias, e em particular a compreensão das obras filosóficas das várias tradições. A escola hermenêutica na Alemanha operou de um modo conciliador, tomando a atividade inevitavelmente fluente e flexível de interpretação de textos como um modelo geral para a compreensão das diferentes atividades e instituições humanas. 

Em França, alguns pensadores com um espírito mais combativo aproveitaram a ideia de que o mundo é todo ele um texto e tornaram-na o grito de guerra de uma cruzada iconoclasta. A cruzada foi levada a cabo em nome do estruturalismo. Como método, o estruturalismo convida-nos a pressupor, com respeito a uma dada estrutura, que a inter-relação entre os seus elementos é mais importante do que qualquer relação entre um elemento individual e qualquer item exterior à estrutura. O estruturalismo, enquanto teoria de um dado campo de estudo, é a tese de que o método estruturalista é a chave para a compreensão desse campo. Assim, com respeito à linguagem, é a tese de que se queremos compreender o significado, temos de estudar as inter-relações entre os elementos significantes do interior da linguagem, em vez de olhar para uma relação entre qualquer significante e o que isso significa.

O pós-estruturalismo levou as teses estruturalistas a posições extremas. E na verdade a refutarem-se a si próprias. Para compreendermos um texto temos de excluir rigorosamente todos os elementos extratextuais. Isto significa não apenas o abandono da procura de qualquer realidade exterior representada pelo texto, mas também deixar de encarar o texto como a expressão do pensamento de um autor fora do texto. É o leitor que paga a despesa na produção do significado. Como a cada leitor corresponde uma interpretação diferente, nunca há um significado definitivo. E assim cada texto destrói a sua própria pretensão de significar seja o que for.

Também a filosofia analítica mudou imensamente desde os anos 60. Em 1960 Oxford era o centro inquestionável do movimento analítico, e os filósofos vinham dos Estados Unidos para ouvir os epígonos de Wittgenstein que migraram de Cambridge para Oxford. Cambridge tinha dado o que tinha a dar depois do desaparecimento da ribalta de 
Bertrand Russell e Wittgenstein. Achavam que a sua tarefa era explorar este feliz legado e partilhá-lo com o resto do mundo filosófico. Mas nos anos de 1970 a liderança do movimento analítico mudou-se definitivamente para o outro lado do Atlântico, apesar de nenhuma universidade americana ter, só por si, herdado o papel dominante de que Oxford gozou. A tradição de Russell e Wittgenstein também não podia durar sempre. E já não estávamos em tempos de adorar génios. Ninguém foi bem-sucedido em redefinir a natureza da filosofia, como Russell e Wittgenstein fizeram. Mantiveram a linguagem no centro da filosofia, mas já não conseguiram ser tão convincentes de que a tarefa da filosofia era o estudo da linguagem que usamos para exprimir os nossos pensamentos. 

Tanto Frege como Wittgenstein faziam uma distinção profunda entre filosofia e psicologia. Para Frege, a lógica, que estava no coração da filosofia, era uma ciência a priori muito diferente de uma ciência empírica como a psicologia; para Wittgenstein, a filosofia diferia da psicologia porque não era de maneira alguma um tipo de ciência, fosse ela empírica ou a priori. Em contraste com isto, os filósofos americanos têm tido tendência para ver a filosofia como uma disciplina científica com técnicas especiais rigorosas próprias, e não como uma demanda informal pela compreensão, demanda fundada na reflexão sobre as atividades não académicas das pessoas comuns. Daniel Dennett, um "wittgensteiniano" e discípulo de Gilbert Ryle em Oxford, foi o grande impulsionador do novo domínio da filosofia - A filosofia da Mente. Inclusivamente, Dennett, foi dos poucos que meteu as mãos nos projetos iniciais do que viria a ser a Inteligência Artificial, um modelo da mente que o estudante de inteligência artificial possa ter como objetivo criar. 

Da primeira denúncia de Frege acerca do psicologismo na lógica, passando pelos escritos do Wittgenstein mais jovem e mais maduro, até à filosofia da linguagem corrente de Oxford e à sua receção nos Estados Unidos, todos aceitavam que a maneira de compreender o pensamento era aprofundar o papel da linguagem. Era uma convicção comum que os pensamentos só podem identificar-se e individuar-se através da sua expressão na linguagem, e que uma estrutura do pensamento acessível independentemente da estrutura da linguagem era coisa que não existia. 

Nos países de língua inglesa encara-se agora como perfeitamente apropriado que os filósofos usem as suas próprias aptidões profissionais para fazer propostas específicas para a reforma de questões públicas, ou denúncias específicas de políticas e administrações. Os filósofos passaram a demonstrar um grande interesse em questões do dia-a-dia, desde os direitos dos animais aos direitos das mulheres. 
A própria conceção de filosofia tornou-se mais vaga e mais aberta nas suas margens. Isto acarreta outra consequência, que é sobretudo relevante para o presente trabalho: a filosofia no mundo de língua inglesa mudou a sua atitude relativamente à sua própria história. Uma era revolucionária não perde tempo a dissecar as minúcias que preocuparam os seus predecessores. As fraturas e a fragmentação do monólito analítico conduziram a um interesse renovado por causas que passaram, devido a essas fraturas, a ser chamadas de "causas fraturantes".


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