terça-feira, 18 de março de 2025

A defesa da democracia



A defesa inquestionável de qualquer sistema político, mesmo a democracia, corre o risco de cair no fundamentalismo, justamente o que a democracia deveria evitar, já que a sua essência é o questionamento, o debate e a pluralidade de ideias. A democracia é, sem dúvida, um dos sistemas políticos mais bem-sucedidos na promoção de direitos e liberdades individuais. Porém, quando se transforma num "dogma inquestionável", perde parte da vitalidade. Como Montesquieu sugeriu, até mesmo a democracia se corrompe, especialmente se a "tirania da maioria" silenciar vozes dissidentes ou evitar a autorreflexão.

Hoje já se começa a ouvir vozes de alegados bons democratas a alertar, que lançar o anátema nas autocracias pode não ser a melhor estratégia em defesa da democracia. A tendência de pintar as autocracias como o "mal absoluto" pode não considerar os contextos históricos, culturais e geográficos que moldaram a constituição de determinados regimes políticos. Tal como na China, há países que demonstraram que formas não democráticas podem, em certos contextos, oferecer estabilidade, crescimento económico e segurança. Criticar a China não significa necessariamente demonizar o seu regime. Deve-se entender que ela pode ser funcional nos seus específicos contextos históricos e culturais. Assim como a democracia, pelas suas imperfeições e limitações, não implica que tenhamos de desistir dela. Só que também não tem necessidade de ser embrulhada no presunçoso celofane moral da esquerda ocidental.

Em muitos casos, a extrema-esquerda ocidental tende a autoproclamar-se a guardiã dos valores "corretos", enquanto ignora as contradições internas das suas próprias demagogias. As democracias não são perfeitas e devem ser questionadas constantemente quando não fazem nada pelas desigualdades. Aspectos como ordem e estabilidade, acima da liberdade individual irrestrita, pode ser uma necessidade real sem que isso seja uma ameaça à democracia. O verdadeiro combate não tem de passar por demonizar o "Outro" e santificar os "nossos", mas sim em compreender os contextos dos complexos problemas da governação em cada momento histórico. As atuais democracias ocidentais estão com graves feridas hemorrágicas, para não dizer fraturas expostas, e por conseguinte, metermos nelas os nossos dedos críticos não tem de ser para piorar.

Donald Trump é uma figura controversa e multifacetada, para não dizer muito esquisita. Devemos criticá-lo, retratando-o como um símbolo de tudo o que há de errado na política contemporânea: populismo, autoritarismo e desprezo pelas instituições democráticas. No entanto, ignorar completamente os contextos de análise é reduzir o debate a um maniqueísmo simplista. A reação irada de alguns políticos ao atacar outros políticos por deitarem água na fervura diplomática, por razões de realismo político, demonstra um problema que é recorrente: a incapacidade de reconhecer que é possível discordar sem desqualificar o outro. Essa atitude reflete a polarização que domina o discurso político atual, onde qualquer tentativa de analisar um adversário político fora da lógica do "bem e do mal" é vista como cumplicidade ou traição.

É fundamental, para a saúde do debate democrático, admitir que até figuras controversas podem ser analisadas em seus méritos específicos. O insulto não apenas ataca a pessoa, mas desqualifica a própria ideia de diálogo pluralista, que é a essência do sistema democrático que se afirma defender. Parte da gente, que se identifica como "bem-pensante", corre o risco de cair numa forma de dogmatismo que nega a própria premissa do debate democrático: a pluralidade de ideias. Esse dogmatismo não apenas aliena potenciais aliados, mas também reduz a capacidade de compreender fenómenos complexos como a insatisfação de milhões de eleitores. 
Contribui-se para o empobrecimento do debate quando se dá prioridade ao ataque pessoal. Ao adotar-se essa postura, reforça-se a polarização, dificultando a busca de consensos ou entendimentos mais profundos sobre questões globais. E, ironicamente, essa incapacidade de dialogar com ideias diferentes é justamente uma das críticas que fazem a Trump quando se gaba de falar com Putin, Xi, Kim Jong-un, como se fossem bons amigos. 

Os recursos financeiros são limitados. Daí que os cidadãos devem estar cientes que o apoio que os europeus estão dispostos a dar à Ucrânia por tidos os meios acabará necessariamente por comprometer o Estado Social que até agora foi possível manter na maior parte dos países ocidentais. E desde que esta questão não seja abordada na falsa dicotomia: guerra vs. bem-estar social. A oposição entre financiar a defesa ucraniana e manter as políticas sociais é uma falsa dicotomia, ainda que na prática os dois aspectos estejam interligados, porque como já se disse , os recursos são finitos. E isto é assim porque, sem estabilidade internacional, a situação seria muito pior se a Ucrânia não fosse ajudada pelos europeus. A defesa dos valores democráticos, e o próprio conceito de Estado Social, pode ser ameaçado se regimes autoritários e expansionistas não forem travados. E tanto quanto é sabido, esse travão só pode ser feito com a força, não com fraqueza. 

As pessoas que insistem na ideia de que qualquer desvio de verbas para a defesa é "antidemocrático", ignoram o princípio básico de autodefesa e da solidariedade entre nações amigas ou aliadas, que enfrentam agressões externas. Essa postura revela uma desconexão com as complexidades da política internacional e, paradoxalmente, pode levar ao enfraquecimento das próprias democracias que queremos proteger. Um mundo onde invasões como a da Ucrânia não são enfrentadas, de forma firme, arrisca normalizar a violação da soberania e os abusos autoritários.

A ilusão de segurança interna, sem autodefesa ou ajuda militar de aliados, não tem como possível preservar o Estado Social sem considerar os perigos vindos do exterior. E não há paz social sem as fundações que sustentam o edifício democrático, como é o da segurança. O dilema apresentado não é trivial. De qualquer modo, o dogmatismo não ajuda a resolver o problema do Estado Social. Posturas dogmáticas e demagógicas só demonstram falta de visão estratégica. Seja como for, também devemos estar cientes de que a sobrevivência da Ucrânia como país livre e independente, e por extensão da ordem democrática global, não passa apenas por uma resolução militar. Afinal, como bem apontou um debatedor: «de que adianta o Estado Social se os ideólogos que o querem sustentar a qualquer custo, estão a empurrar para o abismo as verdadeiras fontes da sua sustentabilidade?»

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