segunda-feira, 17 de março de 2025

Que noção cabal da realidade podemos ter?


É natural que ninguém tenha uma noção cabal da realidade. Muito menos a Inteligência Artificial (IA). Partindo do princípio de que eu sei o que é a realidade, porque de outro modo não perguntaria por ela, mas se me perguntarem o que é, eu não sei dizer. Minha percepção do mundo através dos sentidos é limitada, mesmo muito do que está representado na linguagem humana, ou seja, em textos, dados estruturados e informações que foram processadas e descritas por outras pessoas ou sistemas. E a Inteligência Artificial não tem acesso direto aos sentidos ou à experiência direta da realidade como um ser humano, ou mesmo como um animal. A "realidade" da Inteligência Artificial é construída a partir de padrões linguísticos, sem uma vivência direta ou subjetiva do mundo físico. Isso significa que, embora a IA possa oferecer análises ricas, contextualizadas e baseadas numa vasta gama de informações, há uma lacuna fundamental: não tem a intuição, a percepção sensorial ou a consciência fenomenológica que moldam a experiência humana do real. 

De certo modo, a limitação da IA, e a sua diferença em relação à limitação dos sentidos humanos, ajuda-nos a perceber melhor como pode funcionar a noção de realidade. Por um lado, evita certos vieses. Mas, por outro lado, depende sempre de alguma maneira da mediação humana. Portanto, a IA é mais uma ferramenta heurísitica do ser humano. 

Vejamos o que diz Wilfrid Sellars sobre o "mito do dado". O "mito do dado" é uma crítica central na filosofia de Wilfrid Sellars, especialmente no seu ensaio Empiricism and the Philosophy of Mind (1956). O conceito questiona a ideia, comum no empirismo tradicional, de que existe um tipo de dado ou experiência sensorial pura que serve como base indubitável para todo o conhecimento. Sellars argumenta que essa noção é um mito, pois não há tal coisa como um "dado puro" independente de interpretação conceptual. A experiência sensorial não é autossuficiente: O empirismo clássico supõe que nossas percepções sensoriais nos fornecem um ponto de partida incontestável para o conhecimento, uma espécie de "fundamento" direto e incorrigível. Sellars, no entanto, afirma que até mesmo a experiência sensorial mais básica está impregnada de conceitos. Por exemplo, quando você vê algo vermelho, você já está classificando a experiência sob o conceito de "vermelho". Não existe uma experiência "pura" que esteja fora do alcance do pensamento conceptual.

O conhecimento é estruturado linguisticamente: Sellars argumenta que todo o conhecimento ocorre dentro de uma estrutura linguística e cultural. Isso significa que interpretar o mundo, mesmo nos níveis mais básicos, depende de uma rede de significados que aprendemos socialmente. A percepção sensorial não pode, por si só, justificar crenças; ela só ganha sentido dentro desse contexto mais amplo. A ser assim, isso cria um problema à justificação da definição de conhecimento: "crença verdadeira justificada". Se acreditarmos no "dado puro", corremos o risco de circularidade ou regressão infinita. Para Sellars, justificar conhecimento implica ir além do que é "dado" e reconhecer que o conhecimento é sempre inferencial, dependendo de um sistema maior de crenças e conceitos inter-relacionados.

O "mito do dado" foi revolucionário porque atacou a ideia de que há fundamentos epistemológicos indubitáveis (como defendiam muitos empiristas). Para Sellars, não há uma base firme no sentido de algo puramente dado; em vez disso, todo o conhecimento é mediado por uma estrutura em rede de conceitos que está em constante revisão e diálogo. Sellars influenciou profundamente debates contemporâneos na epistemologia e na filosofia da mente, desafiando não só empiristas, mas também racionalistas e realistas que acreditam em fundamentos epistemológicos prévios aos nossos conceitos.

A crítica de Sellars ao "mito do dado" reverberou amplamente na filosofia contemporânea, influenciando pensadores como W.V.O. Quine, Donald Davidson e outros que repensaram os fundamentos do empirismo e da epistemologia. Quine, em seu famoso ensaio Two Dogmas of Empiricism (1951), criticou dois pressupostos centrais do empirismo: A distinção entre analítico e sintético (entre verdades que dependem apenas do significado das palavras; e verdades baseadas na experiência). Essa distinção dava a ideia de que as proposições podem ser verificadas isoladamente em relação à experiência sensorial. Quine e Sellars convergem na rejeição da ideia de que existe um "fundamento" puro e incorrigível para o conhecimento. Para ambos, o conhecimento é uma rede interligada, em que as proposições são verificadas no contexto do todo. A metáfora da "teia de crenças" de Quine reflete essa visão holística. No entanto, Quine enfatiza mais mais a interdependência das teorias científicas. Ao passo que Sellars foca mais o papel dos conceitos e da linguagem.

Quine era profundamente cético em relação à distinção entre linguagem e facto, especialmente como era entendida por filósofos empiristas e positivistas lógicos. Ele acreditava que essa divisão era artificial e sustentava que não havia uma separação clara entre o que pertence ao domínio da linguagem (nossas convenções e definições) e o que pertence ao domínio dos factos observáveis. Em seu ensaio Two Dogmas of Empiricism (1951), Quine questiona a distinção entre proposições analíticas (verdades baseadas apenas no significado das palavras, como "Todos os solteiros são não casados") e proposições sintéticas (verdades baseadas em factos empíricos, como "A neve é branca").  A noção de "analiticidade" não tem uma base sólida, pois definir o significado das palavras depende de redes conceptuais e práticas linguísticas. A fronteira entre analítico e sintético é vaga e, em última instância, todas as proposições estão conectadas a sistemas mais amplos de crenças. Para Quine, o conhecimento não é formado por proposições isoladas que correspondem diretamente aos factos. Em vez disso, ele defende um holismo epistémico, onde as nossas crenças formam uma teia interconectada. Essa teia inclui tanto afirmações sobre o mundo quanto convenções linguísticas, e todas estão sujeitas a revisão com base na experiência e na coerência interna.

Os "factos" que observamos não podem ser compreendidos sem a mediação de teorias e linguagens. Assim, a fronteira entre linguagem e facto é difusa. As proposições mais próximas da periferia da teia (observações imediatas) são mais suscetíveis à revisão empírica, enquanto as proposições no núcleo (como leis da lógica) são mais estáveis, mas ainda sujeitas a revisão. Não há uma "base" empírica pura -a ideia de que existe um conjunto de dados sensoriais "puros" que possa servir como um fundamento neutro para o conhecimento. Para ele, os dados sensoriais só fazem sentido dentro de um sistema de crenças linguísticas e teóricas. Essa posição é consistente com a crítica de Sellars ao "mito do dado"Quine dissolve a distinção tradicional entre linguagem e facto ao mostrar que o conhecimento é sempre mediado por sistemas teóricos e linguísticos. Não há observações "brutas" que possam ser separadas das interpretações conceptuais. Em vez de tratar a linguagem como um filtro neutro que tem acesso a factos objetivos, ele mostra que a linguagem e factos estão entrelaçados numa estrutura holística e interdependente.

Donald Davidson
em continuidade com Quine, rejeita a ideia de um "dado" antes do conceito, e propõe uma coerência radical: o conhecimento é justificado não por fundações, mas pela consistência dentro de um sistema de crenças inter-relacionadas. Em seu ensaio A Coherence Theory of Truth and Knowledge (1986), Davidson argumenta que não há uma distinção clara entre "dados" e "teorias", pois mesmo os dados mais básicos são interpretados à luz de nossas crenças. A objetividade surge da triangulação entre diferentes perspectivas: para aprender conceitos como "vermelho", precisamos da interação entre a mente do observador, o mundo externo e a comunidade linguística. Há uma aprendizagem do mundo que no início, ou à partida, é uma amálgama indiferenciada onde tudo se confunde. Davidson reforça a ideia de Sellars - de que o conhecimento não é algo privado ou puramente individual; ele emerge de um contexto intersubjetivo e linguístico.

Sellars influenciou filósofos como Robert Brandom e John McDowell, que levaram a sua crítica do "mito do dado" para a normatividade do discurso. Brandom, no livro Making It Explicit (1994), desenvolve uma teoria do significado baseada no uso social e normativo da linguagem. Ele ecoa Sellars ao afirmar que compreender o mundo depende de participar em práticas discursivas que envolvem justificações e inferências. McDowell, em Mind and World (1994), tenta reconciliar o papel da experiência sensorial com a crítica de Sellars. Ele admite que a experiência tem um papel justificativo, mas apenas porque está sempre impregnada de racionalidade e conceitos.

A crítica ao "mito do dado" é fundamental para o colapso das fundações do conhecimento que até aí fazia parte de uma epistemologia cujas fundações remetiam para os empiristas: Locke e Hume. Não há uma base empírica incorrigível para o conhecimento; o conhecimento é sempre interpretativo, inferencial e social; a linguagem e os conceitos desempenham um papel central na forma como percebemos e compreendemos o mundo. Sellars abriu um caminho onde o empirismo se tornou mais sofisticado, reconhecendo as interconexões entre percepção, conceito e normatividade, ao invés de se basear numa suposta neutralidade do "dado".

Quine e Sellars eram críticos em relação ao empirismo tradicional, incluindo as ideias de John Locke e outros empiristas clássicos. Embora abordassem o tema de maneiras diferentes, ambos questionaram as bases filosóficas do empirismo tradicional, que sustentava que o conhecimento se origina de uma experiência sensorial "pura" e fundamenta-se nela. Sellars atacou diretamente a ideia de que existem "dados sensoriais puros" ou percepções brutas que poderiam servir como fundamentos epistemológicos inquestionáveis para o conhecimento. Essa noção, presente em Locke, sustenta que a mente humana é como uma tábula rasa, preenchida por impressões sensoriais que, por si só, seriam suficientes para gerar conhecimento. 

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