segunda-feira, 24 de março de 2025

Matriz indo-europeia


Faz sentido falar ainda numa matriz europeia de raiz indo-europeia em contraponto com uma outra cultura de raiz semita, que também teima em persistir?

Do ponto de vista linguístico e mitológico, a matriz europeia de raiz indo-europeia continua evidente, pois a maioria das línguas faladas na Europa (exceto o basco, o finlandês, o húngaro e algumas outras) pertence à família indo-europeia, e muitas das estruturas narrativas e simbólicas da cultura europeia ainda refletem essa herança. No entanto, a civilização europeia foi profundamente influenciada por elementos semitas, principalmente através do judaísmo e do cristianismo, que se tornaram fundações espirituais e éticas do Ocidente.

Se olharmos para a história, a Europa moderna é uma síntese de múltiplas influências, onde a matriz indo-europeia se misturou com a semita, a greco-romana e até influências orientais posteriores. O cristianismo, por exemplo, é uma religião de origem semita, mas foi reinterpretado e moldado pela mentalidade greco-romana e depois germânica. Já o Islão, outra tradição de raiz semita, teve períodos de grande presença na Península Ibérica e nos Balcãs, deixando marcas culturais a vários níveis, desde a gastronomia até a arquitetura.

Se a questão for vista de maneira mais essencialista, como uma oposição contínua entre um "ethos" indo-europeu e um "ethos" semita, pode-se argumentar que certos traços distintos ainda persistem. Alguns identificam o primeiro com uma visão mais pluralista e humanista da organização social (com base no pensamento grego e romano) e o segundo com uma forte ênfase monoteísta e dogmática, herdada do judaísmo e do islamismo. Mas essa distinção pode ser forçada, pois as culturas são dinâmicas e interdependentes. Então, faz sentido falar nessas duas matrizes como categorias históricas e antropológicas, mas a realidade cultural da Europa atual é muito mais híbrida do que uma simples oposição entre raízes indo-europeias e semitas. A persistência de certas estruturas mentais e religiosas pode ser analisada, mas sempre com a cautela de não reduzir fenómenos complexos a dicotomias rígidas.

Se entendermos um "cataclismo identitário" como um colapso das referências culturais e civilizacionais – algo que pode acontecer por imigração em massa, declínio demográfico, desagregação social ou perda de valores fundadores –, então a questão é profundamente instigante: há uma "genética espiritual" que pode emergir quando uma civilização está à beira do desaparecimento. Historicamente, há precedentes que sugerem que sim. Quando Roma caiu, muito do espírito greco-romano foi preservado e reinterpretado pela Igreja e pelo Império Bizantino. A Europa medieval, por sua vez, recuperou fragmentos do legado clássico através do Renascimento. Em tempos de crise, identidades culturais latentes parecem reemergir, muitas vezes sob formas inesperadas.

Se admitirmos que certas matrizes civilizacionais carregam uma "alma coletiva", algo que pode ser expresso em arquétipos -- mitos, valores e padrões de organização social –, então é plausível que, num contexto de grande fratura, haja um instinto de retorno às raízes. A questão é saber se esse retorno se dará de forma consciente e organizada ou se será um reflexo primitivo e fragmentado. Se a matriz indo-europeia ainda tem força para ressurgir num momento de crise, dependerá de quão profunda ainda é a sua influência no inconsciente coletivo europeu. O que é certo é que outras forças também persistem, e a matriz semita, especialmente através das religiões monoteístas, mostrou uma resiliência notável ao longo da história. Portanto, se houver um colapso identitário na Europa, é possível que certos padrões ancestrais venham à tona. Mas há um dilema: qual será a forma dessa ressurreição? Um renascimento da tradição greco-romana? Uma reafirmação dos valores cristãos? Ou algo inteiramente novo, híbrido e imprevisível?

A questão demográfica é um fator decisivo. No Renascimento, havia uma Europa jovem, com crescimento populacional e capacidade de inovação. Hoje, a situação é oposta: baixíssima taxa de natalidade, envelhecimento acelerado e dependência da imigração para sustentar a economia. Isso levanta a pergunta: que renascimento civilizacional será possível se a matriz original está em declínio numérico? A tese da "substituição" pode ter algum fundamento se olharmos estritamente os números: uma população que não se reproduz e que recebe fluxos migratórios de culturas diferentes, com taxas de natalidade mais altas. Ao longo de gerações pode perder a sua identidade original. Mas a história não é só demografia. Identidade cultural não se substitui apenas pelo crescimento de um grupo e a redução de outro; há também a dinâmica de assimilação e resistência.

Se a matriz europeia ainda tem um "núcleo espiritual" forte, ela pode adaptar-se e influenciar aqueles que chegam, como ocorreu com os povos germânicos que entraram no Império Romano e acabaram absorvendo o cristianismo e a tradição clássica. Se esse núcleo já está esvaziado, então a transformação será mais profunda e poderá dar origem a algo irreconhecível. O desafio da Europa é que a demografia não favorece uma revitalização orgânica da sua identidade tradicional. O renascimento que alguns esperam teria de ser uma reconstrução consciente, não um processo espontâneo como no passado. Mas isso exigiria um novo sentido coletivo de missão, algo que a Europa atual parece não ter.

No que diz respeito a ameaças, a União Europeia tem duas: Uma é a ameaça bélica e geoestratégica da Rússia; outra é a invasão pacífica de povos de África e Médio Oriente. Essas duas ameaças são muito distintas, mas ambas podem ter efeitos desestruturantes para a Europa. A ameaça russa é geoestratégica e militar. A guerra na Ucrânia mostrou que a Rússia ainda vê a Europa como um espaço de influência disputado. Embora a UE e a NATO tenham demonstrado alguma coesão até agora, o desgaste interno e as divisões políticas dentro dos países europeus podem tornar a posição ocidental menos sólida a longo prazo. A Rússia, mesmo economicamente mais fraca que a UE, joga no tabuleiro do tempo longo, apostando no cansaço europeu e nas suas próprias reservas de força bruta.

A invasão pacífica vinda de África e do Médio Oriente, por sua vez, não é militar, mas demográfica e cultural. O fluxo migratório constante coloca em xeque a identidade europeia e as suas estruturas sociais. O problema é que essa pressão não vai diminuir – pelo contrário, com o agravamento das crises climáticas e económicas nesses continentes, a tendência é para aumentar. Os líderes europeus têm oscilado entre políticas de acolhimento e tentativas de contenção, mas sem uma estratégia clara de longo prazo.

A grande diferença entre essas duas ameaças é que a russa é externa e pode ser enfrentada com força militar e sanções, enquanto a segunda acontece dentro da própria Europa, tornando qualquer resposta muito mais delicada. A UE pode reforçar as suas fronteiras e endurecer políticas migratórias, mas a questão de fundo permanece: uma população envelhecida e um modelo económico que precisa de imigração. No longo prazo, a ameaça migratória pode ser mais transformadora do que a ameaça russa. Uma guerra com Moscovo pode ser evitada ou resolvida, mas a mudança demográfica e cultural pode ser irreversível. A grande incógnita é se a Europa conseguirá assimilar e moldar esses novos fluxos ou se será moldada por eles.

Com a viragem estratégica dos EUA para o Indo-Pacífico, a Europa perde a sua "rede de segurança" tradicional. Durante décadas, a defesa europeia foi garantida mas, na prática, isso significava uma dependência dos EUA. Com Washington focado na contenção da China e numa possível crise em Taiwan, a Europa pode ser forçada a lidar sozinha com os desafios à sua segurança, incluindo a Rússia. Isso levanta duas questões fundamentais: A Europa consegue defender-se sozinha? Ou fragmentar-se-á ditando o fim da União Europeia? A UE tem poder económico, mas a sua capacidade militar é desprezível. França e Reino Unido ainda têm forças relevantes, mas a maioria dos países europeus reduziu os seus exércitos desde o fim da Guerra Fria. A criação de uma defesa europeia unificada sempre encontrou resistência, especialmente por parte de países que confiaram demais na NATO. Se os EUA se afastarem, a Europa terá de acelerar o rearmamento, ou aceitar um papel secundário no xadrez geopolítico.

O afastamento americano pode ser um choque de realidade para os europeus, forçando-os a uma maior cooperação militar. No entanto, também pode aprofundar divisões: alguns países podem procurar novos acordos de defesa fora do eixo franco-alemão, enquanto outros podem até se inclinar para concessões à Rússia para evitar confrontos. No fim de contas, a UE terá de decidir se assume um papel de ator estratégico global ou se aceita uma posição cada vez mais periférica, sujeita às arbitrariedades de um possível triunvirato de superpotências: EUA, Rússia e China. Seja qual for a escolha, uma coisa parece certa: a ilusão de que a Europa poderia regozijar-se com a sua economia e os direitos humanos, sem cuidar da sua segurança, está a desmoronar-se.

A ONU, na prática, está impotente diante dessas questões. Como organização, foi concebida para evitar conflitos entre Estados soberanos, mas nunca teve poder real para intervir de forma decisiva em questões geoestratégicas. O Conselho de Segurança, onde a Rússia tem poder de veto, paralisa qualquer tentativa de ação que seja contrária aos interesses de Moscovo. E as crises migratórias não são tratadas como uma ameaça existencial, mas sim como uma questão humanitária. Se olharmos para os últimos grandes conflitos, a ONU falhou em praticamente todos.

Na Síria, assistiu impotente à destruição do país, sem conseguir deter nem Assad nem os jihadistas. Na Ucrânia, limitou-se a condenações formais e a ajuda humanitária. Na crise migratória, não tem conseguido criar soluções estruturais para evitar o êxodo em massa de África e do Médio Oriente. A ONU reflete a correlação de forças do mundo. Sem um consenso entre as grandes potências, o máximo que consegue fazer é emitir resoluções e enviar missões de paz para conflitos menores. Para os desafios que a Europa enfrenta – a Rússia e a pressão migratória – a ONU não será um fator relevante. Se a Europa quiser proteger-se, terá de agir por si mesma. A ilusão de que uma "comunidade internacional" resolveria os seus problemas está fora de qualquer hipótese.

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